Merca-senadores tupiniquins da dúvida
Merca-senadores tupiniquins da dúvida

Merca-senadores tupiniquins da dúvida

Por iniciativa de senadores afeitos à agenda ruralista no Congresso, está programada para ocorrer nesta quinta-feira uma sessão temática para debater o aumento das queimadas e o desmatamento da Amazônia. A iniciativa foi aprovada em sessão remota do Senado na quarta-feira 2 de dezembro e o requerimento que a descreve (RQS 2.771/2020) tem como autores o Senador Luis Carlos Heinze (PP/RS), o Senador Telmário Mota (PROS/RR), a Senadora Mailza Gomes (PP/AC), o Senador Zequinha Marinho (PSC/PA), o Senador Diego Tavares (PP/PB), o Líder do Bloco Parlamentar Unidos pelo Brasil Senador Esperidião Amin (PP/SC), o Líder do PODEMOS Senador Alvaro Dias (PODEMOS/PR) e o Líder do PP Senador Ciro Nogueira (PP/PI).

Acompanhe a sessão clicando aqui.

As justificativas apresentadas no requerimento para discussão da matéria em sessão temática sobre a “preservação da Amazônia” são, no mínimo, esdrúxulas. Segundo o requerimento:

1. é necessário desfazer a péssima imagem do Brasil no cenário internacional em relação à preservação ambiental;

2. trata-se de uma campanha ardilosa para abalar a imagem do Brasil e evitar o desenvolvimento social e econômico;

3. os países ricos/desenvolvidos são responsáveis por desmatar e poluir 25 vezes mais que o Brasil;

4. o território e a produção agrícola brasileira são objetos de “intriga e cobiça”;

5. é previsto que as mudanças climáticas criarão uma demanda maior por alimentos o que, por sua vez, pressionará o Brasil a produzir mais para exportação.

Nesse contexto, ainda segundo o requerimento, a finalidade da sessão é dupla e procurará demonstrar, com dados técnicos, o quanto os produtores brasileiros preservam do meio-ambiente, e a “verdade sobre as queimadas e o desenvolvimento agrícola” na Amazônia.

Para a realização da sessão, foram convidados o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa e da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, o diretor-geral do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia – CENSIPAM e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA.

Ninguém do INPE, instituto do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI, que realiza, há 30 anos, o monitoramento de queimadas e a devastação da Amazônia, foi convidado, embora haja um requerimento assinado pelo Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP), e endossado pela oposição no Senado, solicitando que o convite para o debate seja estendido ao ex-diretor do INPE, Dr. Gilberto Câmara, além de dirigentes de organizações não governamentais como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM e ex-dirigentes do Ministério do Meio Ambiente como o ex-secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco.

Em se tratando de assunto relacionado à Amazônia, o tema é intrinsecamente complexo e deverá requerer, por parte dos convidados não alinhados à política de destruição ambiental do governo, um destrinchamento expositivo que explicite os malabarismos discursivos (ou falácias) os quais, sabe-se de antemão, serão repetidos ad nauseam pelos membros do governo, pelo rebanho de eleitores e pela mídia corporativa, com a finalidade de confundir a opinião pública nacional. A mídia internacional, após 2 anos ouvindo as balelas do desgoverno, dificilmente cairá em qualquer conto, mesmo o de uma das instituições democráticas que estão funcionando plenamente (sic), o Senado Federal.

Embora não seja possível antecipar quais serão os ”dados técnicos” que os senadores esperam ver apresentados, é cabível inferir, sem muita margem de erro, que consistem em algo semelhante ao mecanismo que Naomi Oreskes e Erik M. Conway expuseram no livro Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Climate Change, de 2010, não traduzido para o português, transformado, em 2014, em documentário de mesmo nome (disponível na Netflix), em relação principalmente, mas não exclusivamente, às mudanças climáticas, à indústria do tabaco, etc.: usar nomes de cientistas renomados não para negar, mas para gerar dúvida suficiente sobre os fatos, com o intuito de atenuar o problema e, primariamente, manter o status quo e a situação de exploração econômica corrente, via destruição ambiental.

A primeira evidência disso é a ausência, entre os convidados, de um representante do INPE, instituto que realiza tanto o monitoramento das queimadas e o desmatamento da Amazônia, quanto participa do Painel Internacional de Mudanças Climáticas – IPCC, da ONU. Neste viés, os dados concretos, coletados e consolidados ao longo de mais de 30 anos, reconhecidos pela comunidade internacional de cientistas como a maior e melhor compilação de dados primários sobre monitoramento ambiental do mundo, poderão não ser levados em consideração como determinantes e comprobatórios, na série histórica, de aumento do desmatamento e das queimadas.

A intenção é justamente incutir dúvida sobre a metodologia e os instrumentos de coleta e análise desses dados, como temos visto, por exemplo, em relação à necessidade alegada, mas não factual, de coleta de dados de satélite através da tecnologia Synthetic Aperture Radar (SAR), pelo CENSIPAM, uma instituição militar, em “complementação” às imagens obtidas por instrumento óptico dos satélites da série CBERS e do Amazônia (a ser lançado em breve) pelo INPE.

Uma análise discursiva, ainda que superficial, das justificativas apresentadas evidencia os propósitos da sessão, sob a perspectiva dos mercadores da dúvida adaptados ao roteiro tupiniquim: a) apresentar dúvidas sobre as causas e a quantificação do desmatamento e queimadas; b) diminuir o impacto da péssima imagem do Brasil em relação à proteção ambiental; c) normalizar o problema, através de análise comparativa com os danos ambientais já causados pelos países desenvolvidos; d) manter, através da vertente xenofóbica, a centralidade da agricultura brasileira (e não amazônica) e do atual modelo de produção que envolve a grilagem, o desmatamento, a queimada da floresta e finalmente a posse ilegal da terra; e e) indicar a necessidade de expansão desse modelo, sob o pretexto de que será preciso atender às demandas internas e sobretudo externas.

O falseamento e a clarificação das falácias contidas em tais justificativas somente podem ser obtidos pela explicitação coerente das análises dos dados de desmatamento nos últimos 15 anos, pela elucidação do processo histórico do modelo de produção agrícola e pecuária na Amazônia e, sobretudo, pela indicação da não necessidade de ocorrer mais desmatamento para se obter grande produtividade agrícola e pecuária, graças às pesquisas realizadas pela Embrapa em áreas já desmatadas.

O Senado Federal já deu mostras, durante esta semana, de estar atento às demandas da sociedade ao não referendar um projeto de lei, aprovado pela Câmara, que destinava R$ 16 bilhões do FUNDEB à iniciativa privada.

Resta saber se manterá o mesmo grau de entendimento em relação à política ecocida do governo federal, encontrando maneiras de impedir a continuação da destruição ambiental e apresentando soluções viáveis e factíveis para promover a preservação da Amazônia e a integridade das instituições científicas que produzem conhecimento sobre ela.

Autor

  • Doutor em Linguística na University of California, Santa Barbara. Pós-doutor pela Universidade de Antuérpia, Bélgica, e pela University of Oregon, Eugene. Ex-diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém/Pará, por dois mandatos consecutivos. Atualmente é membro de diversos conselhos e entidades ligadas à sociobiodiversidade, no estado do Pará e no Brasil.