Natal, época de renovar as esperanças no futuro e presentear entes queridos. No último quesito, o Comando da Aeronáutica foi soberbamente agraciado neste final de ano, o que lhe permitiu firmar contrato para o fornecimento de um sistema de sensoriamento remoto baseado em radar de abertura sintética (SAR), que inclui “microssatélite, equipamentos de solo, integração a equipamentos existentes, suporte logístico, lançamento, comissionamento e treinamento”, conforme a nota à imprensa e o Extrato de Dispensa de Licitação no. 1/2020, publicado em 22 de dezembro passado. Nada mal, se pensarmos que este foi um aporte equivalente a mais de R$ 185 milhões que ao câmbio de 5,5 dólares por real corresponde a exatos 33,874 milhões de dólares, não previstos em seu orçamento original, e graças a recursos recuperados pela Lava Jato.
O sistema foi adquirido com base no Art. 24, inciso IX da Lei 8.666, por ter sido classificado como de segurança nacional. Além disto, todos os documentos associados são de caráter sigiloso, o que provavelmente impedirá o pleno conhecimento do que foi adquirido por período talvez superior ao da vida útil do satélite. Trata-se de um processo um tanto quanto controverso desde o princípio, mas certamente não ilegal. Seu desenrolar tem sido acompanhado pela mídia nacional e, em particular, por detalhados artigos do jornalista Rubens Valente, do portal UOL, e do Blog Brazilian Space.
Quando questionada sobre detalhes do contrato e do projeto, a Força Aérea Brasileira – FAB tem sido evasiva, a ponto de não esclarecer de forma objetiva qual será a missão deste satélite. Em nota do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica de 30 de dezembro, foi dito tratar-se de um sistema “cujo principal objetivo é prover infraestrutura espacial para ser usada estrategicamente, e de modo potencializador, no Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul – SisGAAz, no Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON, no Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro – SISDABRA, no Sistema de Proteção da Amazônia – SIPAM e afins”.
A diversidade de dados e equipamentos necessários para apoiar estes vários sistemas de observação, comunicação, comando e controle da Defesa nacional é de tal ordem que, assim como um relógio parado estará inequivocamente certo ao menos duas vezes ao dia – qualquer dado, ou qualquer função desempenhada pelo satélite radar a ser adquirido terá, eventualmente, alguma utilidade. No entanto, continuamos sem saber qual será objetivamente a sua missão. Resta saber se a FAB sabe.
Embora não tenha sido admitido pelo Comando da Aeronáutica nem no extrato do contrato, nem em sua nota explicativa, consta em notas jornalísticas, referentes ao assunto, que o contrato teria sido firmado com a empresa finlandesa responsável pelo desenvolvimento, lançamento e operação da constelação de satélites radar ICEYE, formada por microssatélites operando em banda X. Trata-se de empresa reconhecidamente inovadora, surgida na esteira do dito New Space.
Parte da controvérsia que cerca este processo de aquisição emana do fato de que em meados de 2020, quando o assunto veio a público, várias declarações de representantes do governo confirmaram tratar-se de sistema que complementaria os que hoje fazem o imageamento da região amazônica, mais especificamente aqueles a cargo do INPE, responsáveis pela produção dos dados que alimentam os conhecidos sistemas de alerta DETER e PRODES.
Mais recentemente, o discurso oficial trocou a Amazônia verde pela azul, enfatizando tratar-se de sistema voltado para nossa região oceânica. Ao menos neste ponto há maior coerência, já que os sistemas da empresa contratada operam exclusivamente na banda X que, embora capaz de produzir imagens de regiões florestais, na palavra de técnicos experientes no assunto, não é a ideal para missões de imageamento na região amazônica – fato este que está na origem de boa parte da controvérsia técnica e política que se estabeleceu. No entanto, a nota da Aeronáutica não distingue uma da outra, já que coloca no mesmo patamar o SisGAAz (oceano) e o SIPAM (Amazônia), entre outros. A conferir.
Outro aspecto menos enfatizado está ligado à cobertura de tal sistema. Sabe-se que, nos instrumentos radar, por requerem alta potência elétrica para operar, o tempo útil de operação ao longo de cada órbita é limitado, longe da cobertura contínua proporcionada por sistemas ópticos, que são de natureza passiva. Sendo assim, a superfície útil, de fato observada a cada órbita, é relativamente reduzida. Em nota que cita dados da empresa ICEYE e os coteja com manifestação de técnicos da área, consta que o tempo útil por órbita do sistema adquirido pelo Brasil seria de 120 segundos (120 segundos contínuos e 180 segundos totais por órbita), aspecto que reduziria ainda mais sua adequação para a observação de região com dimensões continentais, mas que se presta muito bem para a observação de alvos singulares, caso seja esta a missão do satélite. Haveria outros aspectos técnicos a discutir, mas que se tornam irrelevantes dada a falta de outras informações fundamentais. Como conclusão, a ausência de informações, com algum nível de detalhe, sobre este recente investimento governamental impede um melhor entendimento do propósito da missão e, consequentemente, uma avaliação comparativa com outros recursos já disponíveis.
Se voltarmos novamente à nota da FAB, que em seu segundo parágrafo diz que esta aquisição “promove a soberania do país no monitoramento satelital por meio de imagens radar”, resta perguntar: como qualificar soberania com uma cobertura aparentemente tão limitada? A resposta está provavelmente no site oficial da empresa contratada. Lá está dito, em tradução livre, que “este poderoso programa abre a oportunidade de aquisição de seus próprios satélites SAR e de participação na constelação ICEYE”.
Talvez aí esteja a chave para a verdadeira natureza do contrato firmado pela Força Aérea. De fato, na falta de dados concretos em razão do sigilo que lhe foi imposto, deduz-se que, o que se está comprando é, além do satélite que será colocado em órbita e o sistema que será implantado em solo, o acesso aos dados da constelação ICEYE. Se estes dados são os que o país precisa, ou se complementam aqueles gerados por outros satélites radar aos quais já temos acesso, são perguntas em aberto, para as quais talvez nunca tenhamos resposta. No entanto, poderíamos incluir mais uma questão: ter acesso a uma constelação sob controle estrangeiro de fato “promove a soberania do país”? É certo que tal arranjo nos proporcionaria capacidade, não há dúvida, mas quanto à “soberania do país”, com o grau de autonomia e independência do qual a Defesa é sempre tão zelosa, não nos parece ser o caso.
Na mesma Nota, há ênfase para o fato de que o satélite a ser adquirido será controlado a partir do COPE (Centro de Operações Espaciais), o que é natural e esperado. Do site da empresa enfatiza-se que o sistema adquirido por seus eventuais clientes será “customizado”. É inevitável que o sistema a ser implantado em solo nacional para comando, controle e aquisição dos dados terá que ser devidamente configurado para as condições brasileiras. No entanto, dado o alto nível de padronização desses sistemas, provavelmente haverá pouco nele que caracterize um produto específico para o Brasil, mormente se vier a operar integrado à constelação ICEYE já existente – o que não é uma crítica, é apenas um fato. De customização mesmo, talvez o brasão da força e um fundo de tela no exato tom de azul.
Poderemos assim, em breve, dispor de dados de um sistema o qual não sabemos ainda quais demandas nacionais poderá atender, e talvez nunca saberemos de fato – sejam elas da Amazônia verde, da azul, ou outras quaisquer. Existe a possibilidade de que venha a substituir sistemas já existentes, como os operados pelo INPE, cujos dados são públicos e permitem sua validação. No caso deste novo sistema, dado o seu caráter militar e sigiloso, não sabemos se um dia haverá tal publicidade.
Ainda em 2021, a esta iniciativa da FAB soma-se outra da Polícia Federal, que assinou contrato com a empresa nacional representante da provedora de dados da constelação de satélites Planet. Dos dois casos decorreu um debate acalorado quanto à real necessidade desses novos sistemas de sensoriamento remoto, debate que não se esgota, já que os responsáveis pelas contratações o fizeram dentro dos parâmetros da Lei, e dispunham de recursos e justificativas para tal.
Há, no entanto, um permanente efeito colateral dessa discussão que, infelizmente, atinge diretamente o INPE. É sabido que este Instituto prossegue em sua diligente tarefa de levantamento de dados ambientais, como os de desmatamento e queimadas, a despeito do rodamoinho político que tais dados causam de tempos em tempos. Ocorre que, sempre que é citado, ele acaba sendo colocado como uma espécie de contraponto a estes planos de governo, mesmo não tendo qualquer responsabilidade ou capacidade de interferir nestes processos. Trata-se de um jogo no qual ele, INPE, tem invariavelmente sido prejudicado, mesmo que, aos olhos da mídia e do grande público, ele continue reconhecido como uma instituição exemplar. No entanto, o jogo da política é pautado por outras regras. Dessa forma, não nos resta outra alternativa senão esperar que a Polícia Federal e a Força Aérea apresentem os benefícios que tais investimentos trarão ao país.
Ao INPE cabe prosseguir em seu trabalho enquanto for capaz e lhe for permitido. Talvez, em breve, venham a ele recorrer para uma melhor utilização dos dados e sistemas recentemente adquiridos. Dada a natureza sigilosa das organizações citadas, provavelmente este apoio teria que seguir regras distintas dos princípios caros e fundamentais para uma organização científica e de natureza civil: a da transparência e publicidade de suas fontes, processos e resultados. Caso venha a colaborar, em nenhuma hipótese seus técnicos e cientistas concordariam, por ação ou omissão, com procedimentos e resultados que não fossem tão bons, ou ainda melhores que aqueles que habitualmente entregam para a sociedade. O problema residiria na eventual obscuridade que poderia impedir a publicidade e a validação dos resultados, aspectos que sempre foram e continuarão sendo fundamentais para a construção da credibilidade da qual o Instituto desfruta.
Contra esta ameaça, se não bastarem os princípios, há a Lei. Neste caso, tanto o Decreto No. 6.666/2008, que instituiu a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), quanto a Lei No. 12.527/2011, também conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), não apenas amparam, mas obrigam uma organização civil como o INPE a disseminar seus dados geoespaciais e respectivos metadados (Art. 3º. do Decreto 6.666/2008).
Concluímos nos perguntando se enfrentar tais desafios vale a pena. Tudo vale a pena, pois o INPE não chega aos sessenta anos, como chegará em 2021, por acaso. Chegará exatamente por tê-los enfrentado. Afinal, com a licença de Pessoa, “Quem querer passar além do Bojador, Tem que passar além da dor.”.