A trajetória de Marco Antonio Raupp como importante gestor e criador de instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento é conhecida, e foi lembrada quando de seu recente falecimento. A partir da criação do LNCC em 1980 e de sua indicação como diretor do INPE em 1985, Raupp inicia uma carreira de gestor de grande sucesso, incluindo a presidência da SBPC, o Ministério da Ciência e Tecnologia, e o Parque Tecnológico de São José dos Campos. Menos conhecido é seu histórico anterior, e seus anos de formação durante a ditadura militar. Na maior parte dos casos, obituários tendem a citar os principais feitos e realizações do homenageado, dando pouca atenção aos anos de formação, nos quais o caráter é forjado.
Sabemos que o caráter de cada um é uma combinação de três elementos: o DNA que trazemos, as influências familiares e os efeitos do ambiente em que vivemos. No caso de Raupp, lanço aqui a hipótese de que sua experiência na Universidade de Brasília entre 1963 e 1965 e sua posterior carreira durante os anos de chumbo da ditadura militar (1964 – 1985) foram fundamentais para definir sua visão de mundo e seu compromisso com o Brasil.
A criação da Universidade de Brasília em 1961 ocorre em um momento de enormes expectativas. Seus criadores, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, são referências para todos. Em seu livro UnB: Invenção e Descaminho, Darcy Ribeiro conta seu sonho de trazer para a UnB “o melhor da inteligência brasileira”. O projeto da UnB foi inovador. Acabava com as cátedras, criava institutos integrando faculdades, exigia tempo integral, e buscava a excelência. O essencial era ter cérebros criativos e bem-dotados. Darcy recruta um mix de cientistas estabelecidos e jovens talentos, entre eles Raupp, então um jovem de 25 anos já com dois filhos, formado em Física pela UFRGS.
Esses sonhos de um Brasil inteligente estiveram entre os primeiros a ser atacados. Na UnB, a primeira invasão aconteceu em 9 de abril de 1964, logo após o golpe. Conforme relata o prof. Roberto Salmeron em seu livro “Brasília: A universidade interrompida”, a invasão da UnB teve episódios folclóricos. Os invasores relataram ter confiscado a bandeira da China. Fake news. Era a do Japão. Tábuas de logaritmos foram tomadas como códigos secretos. Que esses absurdos não enganem ninguém. O essencial foi o desmonte da UnB, com a demissão do reitor Anísio Teixeira e vários professores. Um período de relativa calma, enquanto esteve reitor Zeferino Vaz, que mais tarde funda a UNICAMP, não durou muito. Zeferino foi substituído por Laerte Ramos de Carvalho, que não deixou dúvidas: “estou aqui a serviço do governo”. Em 8 de setembro de 1965, devido à demissão de três professores por “conveniência da administração”, os demais professores entraram em greve por 24 horas. Em resposta, o reitor solicitou que tropas militares invadissem o campus. Nessa situação intolerável, 223 dos 305 professores da Universidade demitiram-se. E, dentre eles, Marco Raupp.
Saindo da UnB sob perseguição militar, Raupp conseguiu uma vaga de docente apenas na PUC/RIO, dado que os cargos federais estavam vetados a “inimigos do regime”. Em 1966 concluiu o Mestrado em Matemática no IMPA; em 1971, o doutorado em Matemática em Chicago. Depois voltou brevemente para a UnB, entre 1971 e 1973. Logo foi atraído para o IBGE, onde se estabeleceu o Instituto Brasileiro de Informática – IBI sob a liderança de Antônio Olinto. A missão do IBI era modernizar a análise de dados estatísticos do IBGE. Como é comum acontecer no Brasil, quando o trabalho estava bem adiantado, o grupo foi desfeito e comprou-se um software importado. Raupp não desanimou. Saindo do IBGE, em 1977 organizou o Laboratório de Cálculo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – CBPF. Desse laboratório, nasceu o Laboratório Nacional de Computação Científica – LNCC, criado em 1980, do qual Raupp foi Diretor Científico, até assumir o INPE em 1985.
Com sua conhecida capacidade, Raupp poderia ter se estabelecido como um professor e pesquisador. Mas sua energia e sua vocação estavam alhures. Para alguém desejoso de transformar a realidade, a prática diária da academia não oferecia conforto. Não era para ele o distanciamento do mundo tão louvado por muitos matemáticos. O que o atraía não era publicar artigos científicos bonitos e compreensíveis para poucos. Sua alegria estava na construção de instituições e projetos de longo prazo, capazes de transformar a realidade brasileira.
O que mais impressiona em Raupp é sua capacidade de superação, e de tomar as decepções e frustrações como energia para tentar novamente. É inevitável que a experiência frustrada de implantação de um novo tipo de universidade na UnB tenha tido influência decisiva em sua formação. A visão de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira de um Brasil mais justo, com escolas públicas de qualidade em todos os níveis, foi um motivador permanente.
Seus anos de formação, incluindo a experiência da UnB e as dificuldades de viver sob a ditadura, foram determinantes para que a energia de Raupp explodisse após a redemocratização. Sua coragem pode ser medida por suas realizações no INPE. Para criar o programa CBERS, teve de enfrentar a tutela militar sobre o programa espacial. Montar o CPTEC implicou enorme responsabilidade para modernizar a Meteorologia no Brasil. Nesse e noutros casos, enfrentou o complexo de inferioridade arraigado nas elites brasileiras, inclusive as científicas. Ele dizia sempre: “Tem muito cientista que se diz especialista em A ou B. Quando é chamado a colocar seu conhecimento em prol da sociedade, refugia-se em toda sorte de desculpas para dizer que isso não é possível”.
Considerando a enorme carência de visionários em Ciência e Tecnologia no Brasil e o amplo legado de Raupp, cabe perguntar: de quê são feitos os bons gestores de C&T? O que dá energia a alguém como Raupp para permanecer ativo na gestão de P&D por mais de 40 anos? O que podemos aprender de sua vida, num momento em que tanto precisamos de lideranças que nos ajudem a sair das desgraças em que vivemos? Que lições podemos aprender da trajetória de Raupp para o futuro de nossas instituições de C&T?
Um dos pontos fundamentais de seu legado é a necessária distinção entre cientista e gestor de C&T. Um bom diretor de instituições de C&T não se forma apenas produzindo artigos científicos. É preciso mais, muito mais. Política científica não é só Ciência, é Política também. É preciso sair da “torre de marfim”, entrar no debate das opiniões, expor suas ideias, exercer a cidadania de forma plena, defender as instituições e nunca se esconder atrás de desculpas fáceis. Como mostram os anos de formação de Raupp, tornar-se um bom gestor de C&T não é apenas questão de vontade pessoal. É preciso ter vivido momentos difíceis para deles tirar a coragem necessária para enfrentar o mar de tribulações sempre presente nesse Brasil subdesenvolvido. É preciso não desanimar e pensar grande. Não venceremos nossas desigualdades apenas com bons currículos Lattes. Ousemos usar nosso conhecimento para mudar a realidade.
Hoje, vivemos mais uma situação de ameaça à democracia. Muitos de nós estão “andando de lado e olhando pro chão”, com diz o poeta. Que a capacidade de resistência de Raupp, que sofreu duramente durante a ditadura militar, possa nos inspirar para a necessária retomada após 2022. Para reconstruir nossa sociedade e nossas instituições, precisaremos de coragem, de ousadia e da união de todos os democratas.