Desmonte das bibliotecas públicas evidencia o desinvestimento cultural e educacional no Brasil
Desmonte das bibliotecas públicas evidencia o desinvestimento cultural e educacional no Brasil

Desmonte das bibliotecas públicas evidencia o desinvestimento cultural e educacional no Brasil

Dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas sugerem que o País perdeu quase 800 locais entre 2015 e 2020

As políticas públicas de incentivo às bibliotecas vêm sofrendo cortes no Brasil. Segundo especialistas da Biblioteconomia e da Educação ouvidos pelo Jornal da USP, esses espaços promovem a divulgação segura de informações, a cultura, a formação educacional das pessoas e a preservação da memória histórica. Cada tipo de biblioteca, entre pública, escolar e circulante, atende a necessidades informacionais e culturais específicas da sociedade. E é o bibliotecário que deve atuar nesses locais fornecendo orientação e mediação adequadas para as pessoas.

As bibliotecas públicas

Dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, o SNBP, sugerem que o Brasil perdeu quase 800 bibliotecas públicas entre 2015 e 2020. Especialistas da biblioteconomia alegam que o número pode ser ainda maior, devido à fragilidade do SNBP com a extinção do Ministério da Cultura e o controle pouco efetivo dos sistemas estaduais.

Segundo Cibele Araújo, professora do curso de Biblioteconomia da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o tanto de bibliotecas públicas brasileiras fechadas revela um desinvestimento na cultura e na educação: “As bibliotecas públicas em muitos municípios são um elo fundamental da cultura. Podem ter nessas bibliotecas ações culturais muito importantes para a formação do indivíduo, para o desenvolvimento da sua cidadania”. Algumas das atividades promovidas são saraus literários, recitais, musicais e peças.

Há também falta de políticas públicas voltadas para o social, já que uma parte da população vulnerável não consegue ter fácil acesso às livrarias, nem renda para comprar livros. As bibliotecas públicas seriam um apoio a essas pessoas, como as que moram em municípios de difícil acesso e locomoção. A professora ainda conta que muitos alunos do curso de Biblioteconomia desenvolveram interesse por essa área ao ter contato com as bibliotecas públicas de suas cidades.

As bibliotecas públicas também são importantes para a memória brasileira por guardarem a literatura e a informação e história local a partir dos livros físicos e de projetos internos para contar e recitar histórias.

Para Cibele, é necessário garantir investimentos e legislações a favor de manter as bibliotecas públicas abertas, conservando seus espaços de união social e a cultura do País:

“A gente tem que ter uma pauta de defesa perante os prefeitos, governadores, vereadores e deputados. Investimento na cultura não é custo, é benefício puro para ter uma sociedade mais desenvolvida.”

Ela completa afirmando que é uma defesa que precisa partir de várias instâncias, pelos cursos de Biblioteconomia nas universidades, pelos conselhos profissionais e associações e federações. “Um trabalho quase de formiguinha, de fazer a defesa dessas instituições, olhando a biblioteca com uma importante instituição de informação e cultura”, afirma.

Ouça abaixo a entrevista com Cibele Araújo, professora do curso de Biblioteconomia da ECA-USP, sobre as bibliotecas públicas:

Bibliotecas escolares

De acordo com o Anuário Brasileiro de Educação Básica de 2021, uma ferramenta de consulta sobre o panorama do ensino no País, infraestruturas essenciais na aprendizagem, como a biblioteca, ainda não estão presentes na maioria das escolas brasileiras. As bibliotecas escolares diferem das públicas por serem um equipamento intrinsecamente ligado à cultura e ao processo de ensino-aprendizagem por meio de recursos educativos para estudo, encontro e lazer.

Apesar da universalização das bibliotecas escolares decretada na Lei 12244/10, a demora na sua efetivação preocupa o acesso a elas: “Em 2010, a gente tem que propor uma lei para exigir a existência de bibliotecas nas escolas. Isso já é uma coisa alarmante”, reflete Ivete Pieruccini, professora do curso de Biblioteconomia da ECA-USP. Doze anos depois, o fechamento desses ambientes sinaliza uma falta de investimento na relação entre o aluno brasileiro e a biblioteca.

Além da quantidade, a configuração dos espaços também é tema de receio. A percepção diluída da biblioteca como uma instituição de organização, oferta e distribuição de informação não contempla a complexidade do papel cumprido por elas em contextos educativos. Segundo Ivete, no universo da comunidade escolar, as bibliotecas são responsáveis por autores dos processos de formação de pensamento da sociedade. “A responsabilidade dessas instituições não é uma responsabilidade meramente técnica. Elas têm um comprometimento social. Bibliotecas são instâncias de caráter político”, comenta.

O interesse de cada população com a biblioteca determina também a abordagem das estruturas e ferramentas disponibilizadas aos sujeitos que ocupam esses espaços. A professora considera que as particularidades da sensação de pertencimento à biblioteca e à leitura devem ser interrogadas: “O que ele vai fazer com aquela leitura? Com quem ele vai conversar? Onde ele vai desenvolver ideias? Onde ele vai expandir o pensamento a partir daquela leitura?”, elabora sobre o aluno que visita o ambiente.

Ao contrário de uma ótica reducionista, o papel de bibliotecas em escolas de comunidades com interesses e identidades diversificados implica repertórios locais repassados por gerações através da memória. “Quanto menos acesso a essa memória que está no conhecimento acumulado pela humanidade, quanto menos acesso [às bibliotecas escolares] a juventude tem, mais ela se torna desconectada do mundo que ela vive” afirma Valdir Heitor Barzotto, professor e vice-diretor da Faculdade de Educação (FE) da USP.  Para ele, ao permitir o acesso a conhecimentos distantes em tempo e espaço, as bibliotecas provocam os jovens a construírem sua própria prática cotidiana.

Com o fechamento das escassas bibliotecas, a biblioteca como um espaço de acesso público, livre e gratuito é um princípio a ser defendido, na visão de Barzotto. “Não há outro espaço mais livre do que a biblioteca. A biblioteca garante que esse conhecimento seja de acesso ao público e que não vire mercadoria”, reforça ele. Com o conhecimento acumulado, o jovem encontra a si mesmo na leitura e como agente na reinvenção de sua prática.

O sumiço desses espaços de educação também tem como um dos impactos a situação financeira, uma vez que, com a falta de acesso ao ambiente, o leitor vai sendo incitado a suspender ou a pagar pela prática de atividades de formação cultural. Sobre a pressuposição da qualidade ser proporcional ao preço, o professor declara: “Cada vez mais tem esse investimento do mercado em transformar um conhecimento em mercadoria e é importante fechar a biblioteca”.

“Essa ‘mercadorização’ do conhecimento, a transformação do conhecimento em objeto de consumo mediante pagamento, faz com que o leitor, agora transformado em consumidor, não se sinta mais desafiado a entender a dimensão de uma unidade que está nele, de se comprometer em deixar um conhecimento mais avançado para as gerações que virão, a produção de novos conhecimentos ou de uma transformação da sua própria prática”, conclui.

As bibliotecas circulantes

Além das bibliotecas instaladas em prédios institucionais, existem as bibliotecas circulantes, também conhecidas como ambulantes. Elas estimulam a troca de livros de um modo mais dinâmico e procuram alcançar em especial quem não tem acesso fácil aos centros de informação. Algumas são itinerantes, percorrendo roteiros pela cidade, e outras, fixas, colocadas em pontos de grande circulação de pessoas.

“São acervos de bibliotecas estabelecidas e organizadas por alguma instituição, uma ONG, ou até uma biblioteca comunitária”, define Cibele Araújo, professora do curso de Biblioteconomia da ECA-USP. Para serem consideradas bibliotecas como a biblioteconomia conceitua, as bibliotecas circulantes precisam conservar as funções fundamentais de organização, gestão e mediação da informação por parte de bibliotecários regulamentados.

Um exemplo de programa itinerante é o Ônibus-Biblioteca, hoje com o nome de Ônibus da Cultura, da Prefeitura da cidade de São Paulo, criado em 1935. Os ônibus fazem doze roteiros. Com a pandemia, as atividades foram suspensas e ainda não foram retomadas.

Também existem pontos fixos de troca de livros em áreas como pontos de ônibus e shoppings. Uma questão a se atentar nessas ações é a qualidade das informações que estão circulando, se não contarem com nenhum tipo de mediação. “As bibliotecas primam porque elas fazem uma certa seleção de material”, afirma Cibele. Não deve haver preconceitos nesse processo de seleção, mas critérios definidos para filtrar a informação. “Notícias falsas não poderiam, um documento, um livro inteiro que fosse construído dentro dessa ideia não seria admissível numa biblioteca.”

Veja  matéria na íntegra: Jornal da USP

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