Por: Armando Zeferino Milioni, abril de 2024
Em um mundo que valoriza medidas de sucesso, como riqueza e progresso tecnológico, o que de fato contribui para a felicidade de uma nação? Em 2012, as Nações Unidas (ONU) embarcaram em uma jornada ambiciosa para desvendar essa questão, o que acabou levando à criação do cada vez mais influente e respeitado Relatório Mundial da Felicidade, ou WRH (sigla em inglês para World Happiness Report).
Reconhecido por sua qualidade e rigor técnico, o WHR foi inspirado no trabalho do notável economista Jeffrey Sachs, professor da Universidade de Columbia, que defendia a importância de medir o bem-estar e a felicidade das nações para além de indicadores como Produto Interno Bruto (PIB) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ambos também são empregados pelo WHR, mas a eles são acrescidos outros, coletados a partir de pesquisas de campo conduzidas anualmente em cada um dos cerca de 150 países participantes da iniciativa. Esses indicadores adicionais buscam incorporar à análise a percepção das pessoas sobre sua própria felicidade e qualidade de vida, incluindo aspectos como saúde, liberdade, generosidade e honestidade do governo e da população.
Desde sua primeira edição, em 2012, o relatório é publicado anualmente (com uma única exceção, em 2014) e cada edição leva em consideração dados dos três anos que antecedem o da publicação. A partir de 2016, o WHR passou a ser divulgado sempre no dia 20 de março, Dia Internacional da Felicidade, data escolhida pela ONU com o propósito de promover a busca da felicidade como um objetivo universal nas vidas das pessoas ao redor do mundo. Assim, no último dia 20 de março foi publicado o WHR 2024, que não exibiu surpresas significativas na relação dos dez países identificados como aqueles com as populações mais felizes do mundo. Dentre eles estavam cinco países nórdicos (Finlândia, Dinamarca, Islândia, Suécia e Noruega), Israel, Holanda, Luxemburgo, Suíça e Austrália. De uma forma geral, o que essas sociedades têm em comum são um índice elevado de inclusão social, com forte ênfase no bem-estar coletivo, igualdade e sustentabilidade, além de um bom equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, cuidado com o meio ambiente e uma rede de segurança social robusta.
Na primeira edição do WHR, em 2012, a população brasileira foi classificada como a 25ª mais feliz do mundo. Em 2013, o Brasil subiu um degrau no ranking. Em 2015, com dados de 2012 a 2014, o Brasil alcançou a sua melhor posição até hoje. Éramos a 16ª população mais feliz do mundo, imediatamente atrás dos Estados Unidos e à frente de países como Alemanha, França, Itália e Japão. No ano seguinte (2016), o Brasil perdeu um posto e, desde então, o país ingressou numa trajetória de declínio acentuado, caindo sucessivamente para as posições 22ª (2017), 28ª (2018), 32ª (2019 e 2020), 35ª (2021) e 38ª (2022). Mas nada se compara à queda sofrida em 2023 (dados de 2020 a 2022), quando o país perdeu mais de dez posições no ranking e caiu para a 49ª posição.
O WHR descreve de maneira precisa o que se deu com o Brasil nos últimos dez anos. Em meados da década passada, o país tinha os melhores indicadores de sua história nos principais campos de observação, como ilustram estes exemplos: na política, tínhamos a democracia mais longeva (30 anos seguidos, entre 1985 e 2015); na educação, o Brasil tinha mais de 95% das crianças em idade escolar matriculadas no ensino fundamental, índice superior ao dos Estados Unidos e de outros países da OCDE (relatórios da Unesco, agência da ONU voltada a assuntos de educação, ciência e cultura); no bem-estar social, havíamos saído do mapa mundial da fome (novamente, relatórios da Unesco); na saúde, entre 2000 e 2015, reduzíramos a mortalidade infantil a menos da metade (IBGE); na economia, havíamos subido da 13ª posição no ranking mundial de PIB nominal, em 2002, para a 7ª, que ocupamos por cinco anos seguidos, entre 2010 e 2014 (relatórios do FMI, Fundo Monetário Internacional). E, claro, chegamos a ter a 16ª população mais feliz do mundo (WHR).
Essa evolução não passou despercebida no Brasil e muito menos no exterior. Por aqui, nossas elites viram o país na trajetória que sempre temeram e que souberam evitar por vários séculos. Se a massa de brasileiros pobres e miseráveis se alimentasse, tivesse saúde, se educasse e conquistasse dignidade e cidadania, quem haveria de lhes servir e de limpar seus banheiros por um salário aviltante? Valendo-se habilmente de oportunidades circunstanciais, essas elites usaram seu braço de comunicação da grande mídia comercial para convencer a população de que todas aquelas conquistas eram ilusórias, já que o país estava em um mar de lama e que a corrupção era a mãe de todos os nossos problemas. Vieram as chamadas “jornadas de 2013”, com insanidades do tipo “não-vai-ter-copa”, seguidas do golpe do impeachment de uma presidenta que jamais cometeu qualquer crime de responsabilidade e do golpe da prisão sem provas do líder político que as pesquisas indicavam como franco favorito nas eleições presidenciais de 2018. Tudo isso sob o olhar atento e cúmplice da extrema direita internacional, particularmente a estadunidense, cuja participação efetiva em cada um desses episódios ainda está por ser totalmente esclarecida.
A catástrofe resultante pode ser medida com dados objetivos e usando exatamente as mesmas fontes: dois golpes seguidos deram cabo da longevidade de nossa democracia; o Brasil voltou a ter mais de 5% das crianças em idade escolar fora do ensino fundamental; retornamos ao mapa mundial da fome; a taxa de mortalidade infantil praticamente estagnou e tivemos um dos piores resultados mundiais no combate à COVID; em 2021, caímos para a 12ª posição do ranking de países quanto ao PIB nominal. E, claro, despencamos para a 49ª posição entre as populações mais felizes do mundo.
Felizmente, esse quadro começa a ser revertido. O WHR de 2024 mostrou o Brasil ascendendo no ranking pela primeira vez desde 2015. A inclusão dos dados de 2023, ano do retorno do país à racionalidade governamental e à normalidade institucional, foi suficiente para que subíssemos cinco degraus no ranking, com nossa população passando a ser classificada como a 44ª mais feliz do mundo.
Os nazistas acreditavam que compunham um povo superior, o ariano, e dividiam os demais povos ou grupamentos humanos entre os que poderiam ser tolerados e os que deveriam ser sumariamente exterminados, como os ciganos, os judeus, os comunistas ou pessoas portadoras de algum tipo de deficiência física ou mental. Entre 2019 e 2022, o Brasil foi administrado por um governo não apenas irracional e incompetente, mas que cultivava valores que lembravam os dos nazistas, no sentido de crer e propalar a existência de um suposto jeito único e “certo” de ser – o do homem branco, cristão, heterossexual, de extrema direita etc. – desprezando e praticando políticas de exclusão frente a qualquer tipo de diversidade. Como foi muito bem capturado pelo WHR, esse governo levou a infelicidade à população brasileira que, em poucos anos, despencou da posição que ocupava, entre as 10% mais felizes do mundo, para outra além do primeiro terço dessa mesma classificação.
O Brasil de 2024 ainda carrega as marcas dos últimos anos. A sombra do obscurantismo, da intolerância e do negacionismo continua a pairar sobre a nação. O povo brasileiro enfrenta agora a provação de voltar a lutar por um futuro enraizado em valores como justiça social, igualdade e sustentabilidade. Precisa vencer os resquícios do ódio e da ignorância e reconstruir um país onde a busca da felicidade não seja um privilégio de poucos, mas um direito de todos. Um país onde a diversidade seja celebrada, a ciência seja respeitada e a educação seja valorizada. O caminho a ser trilhado não será fácil, obstáculos e desafios certamente se apresentarão, mas é necessário crer que seremos capazes de superar essas adversidades. Mais do que nunca, aliás, sem medo de ser feliz.