“Será necessário estancar o processo de ignorância e injustiça ambiental que vem se arrastando há décadas, e cuja falta de correção já ameaça o futuro e a sustentabilidade nacional”, escreve Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), em artigo para o Eco
Um dos principais desafios do próximo governo será colocar ordem na Amazônia, livrando-a dos efeitos da “cupinização” institucional citada pela ministra Carmen Lúcia em recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.
Os problemas da Amazônia não são só desordem e criminalidade desenfreada. É matéria para estudo sociológico e deve motivar reflexão para soluções estruturais, que envolvem reconstrução e potencialização do “ethos” brasileiro.
O valor crescente da Amazônia como riqueza natural brasileira e global é atestada cientificamente. Beneficia a regulação climática, sequestra carbono, equilibra o clima ao longo da zona equatorial, abriga a maior diversidade biológica planetária e fornece chuvas para o continente sul-americano.
Com dimensões continentais, sua capacidade de resiliência, em várias regiões, está próxima do ponto de não retorno, onde o microclima alterado retira as condições para a sobrevivência da floresta. Como nos ensina a cientista Ima Vieira, da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), a floresta é “um sistema complexo, cujas propriedades e características emergem de dinâmicas evolutivas e propiciam a auto-organização e o surgimento de intrincadas interações entre espécies”.
Especialmente do lado sul e ocidental, o ponto de não retorno é mensurável. A floresta está deixando de absorver mais carbono do que emite. Aplicando a lógica da descapitalização do patrimônio natural, concluímos que a Amazônia vale hoje mais do que valia há 50 anos. É óbvio que 1.661 km² desmatados em agosto deste ano é um número assustador, mas é pior que isso. O desmatamento nos dias de hoje tem valor exponencialmente maior do que há 50 anos, nos tempos militaristas da Transamazônica, o que exige do Brasil a tomada medidas emergenciais para sua proteção.
É preciso observar o estágio de insalubridade legal, dimensionar o índice de criminalidade que se instalou por lá nos últimos anos. São 3 milhões de quilômetros de estradas clandestinas, distância equivalente a 75 voltas no planeta, entremeadas por 1.269 pistas clandestinas de pouso, construídas ilegalmente ou capturadas dos povos indígenas, com aproximadamente 500 km de extensão, distância superior à da rodovia Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro.
Além da escala de criminalidade, há o cerceamento proposital dos meios que poderiam dar sustentabilidade econômica e ambiental para a região. Apenas 2% dos R$ 3 bilhões alocados anualmente para o setor do agronegócio na região são destinados a projetos de bioeconomia, que reconhecidamente alavanca o extrativismo sustentável e proporciona emprego e renda sem destruir a floresta. Some-se a isso o montante bilionário paralisado no Fundo Amazônia, obstado pelo atual governo sem justificativas plausíveis.
A dimensão da ilegalidade aponta também evidente orquestração política. É hora de desencanto. Mais cartas de intenções ou meras declarações governamentais não trarão efeito prático, a não ser simular figurações para confundir a opinião pública, aprofundando a confusão que encobre uma profunda crise ética, social e ambiental de governança.
O valor global da Amazônia cresce também com o cenário de inadimplência das nações signatárias do Acordo de Paris. A Conferência COP 27 no Egito, em novembro, deverá debater e regular o mercado de carbono, na intenção de promover uma dinâmica que apoie políticas de valoração do sequestro de Gases Efeito Estufa (GEE), ou seja, do papel das florestas. Resultará em mais mercado do que solução? O mundo pagará para ver.
Sejam as propostas eficazes ou greenwashing, desenha-se um futuro incerto para os debates em Sharm-el Sheikh, no Egito. Diante de um cenário crescente de descumprimentos das metas de redução de GEE estabelecidas no Acordo de Paris, o mundo tem mergulhado em crescentes confusões geopolíticas, que vão desde guerras ao ressurgimento de usinas de energia movidas a carvão.
Se não bastasse a ascensão global de políticas externas pouco solidárias para com os países econômica e ambientalmente vulneráveis, o Brasil tem relegado seu DNA ao esquecimento. A imensa profusão de qualidade e quantidade das comunidades vivas e seus aspectos ecossistêmicos equatoriais e tropicais foi motivo de encantamento dos estudiosos da vida, como o evolucionista Charles Darwin, o Patriarca Joé Bonifácio de Andrada e Silva e o botânico Albert Loefgren, que instituiu o Horto Florestal paulista.
A lição que se impõe ao Brasil passará, inicialmente, por se reconhecer, saber quem é em sua essência. Mergulhado em uma espécie de transtorno dissociativo de identidade, sem um projeto de nação em função de muitos desgovernos, o Brasil não consegue corresponder aos princípios de sua robusta Constituição Cidadã de 1988, onde se definem, de forma republicana, fortes conceitos que atestam a relevância de sua essência ambiental.
O transtorno está na dissociação da identidade, de sua gênese, obscurecida pelo estágio avançado do abuso e pilhagem por forças econômicas de viés expoliatório e colonialista.
Portanto, o futuro governo deve começar a construir um projeto de país a partir da retomada de sua identidade, de seu DNA. Deverá resgatar a Amazônia da criminalidade, com fortíssima fiscalização integrada entre todos os agentes responsáveis, estruturando os órgãos ambientais e eliminando a morosidade do judiciário para a efetiva reparação dos danos ambientais causados à floresta.
Neste universo biofísico, bioquímico e de intensas vulnerabilidades sociais, há de se ter o devido respeito com a magnitude da vida que está em jogo. A Amazônia representa a exportação da umidade que produz as chuvas continentais. Este driver de condições naturais essenciais garante a perenidade da nação. Sua influência é elemento vital para o Pantanal e demais biomas como Mata Atlântica, Cerrado, Pampas e Caatinga, que dependem de sua força ecossistêmica regeneradora.
Regenerar a Amazônia implica amplo processo de comunicação. Eistein considerou que “o mundo tal como criamos é um processo do nosso pensamento. Não pode ser alterado sem alterarmos a nossa maneira de pensar”. Conclui-se que o maior desafio do próximo governo será estabelecer um processo de ampla comunicação sobre o que representa o patrimônio ambiental da Amazônia para a vida dos brasileiros.
Será preciso reestabelecer a paz na região da Amazônia, proteger as etnias, os povos da floresta e tradicionais, seus territórios, integrar comunidades em processos de extrativismo sustentável e de recomposição florestal, com forte solidariedade e apoio de recursos nacionais e internacionais.
Será necessário estancar o processo de ignorância e injustiça ambiental que vem se arrastando há décadas, e cuja falta de correção já ameaça o futuro e a sustentabilidade nacional, atingindo água e segurança alimentar, campo, cidades e metrópoles, a possibilidade de geração de renda e a qualidade de vida no Brasil.