Ciência sob censura
Ciência sob censura

Ciência sob censura

Em 25 de novembro li neste espaço um artigo intitulado: Sem capacidade para cuidar do Meio Ambiente, ministro decide atacar quem o critica. Trazia a matéria que o ministro do Meio Ambiente ajuizou interpelação judicial contra, dentre outros, o cientista Antônio Donato Nobre, pesquisador do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE. Aparentemente, desagradaram a S.Ex.a as afirmações do eminente cientista de que a floresta amazônica atingira o ponto de não retorno, bem como sua lembrança de que o Ministério Público investiga S.Ex.a por sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, além de uma condenação por improbidade administrativa.

Na noite anterior, eu iniciara a leitura de Censoring Science (Censurando a Ciência, 2008), livro quase inteiramente dedicado à perseguição sofrida pelo cientista americano James Hansen ao longo de diversos governos republicanos. Enquanto muitos o consideram o maior climatologista do planeta, alguns o consideram ingênuo pela objetividade com a qual apresenta suas previsões sobre a catástrofe climática em curso. Há algum tempo que o monumento civilizatório criado pela humanidade caminha em marcha à ré, rumo à Idade Média, período histórico no qual propalar verdades científicas era o mais curto caminho para se chegar ao inferno. Neste contexto, a analogia entre Galileu Galilei e Dr. James Hansen é apropriada. Contudo, enquanto Galileu se considerava o próprio mensageiro das estrelas, obra que publicou em 1610, Dr. Hansen possui um perfil discreto definindo-se como um conservador moderado, sem alinhamento partidário. Em comum entre eles, a busca pela verdade científica.

James Hansen obteve a mais alta pontuação em um teste de QI em sua escola, o que lhe abriu as portas para uma bolsa de estudos na universidade. Enquanto estudante de graduação, mestrado e doutorado na Universidade de Iowa, James Hansen teve como modelo o cientista James Van Allen, responsável pela primeira descoberta científica da Era Espacial: os cinturões de Van Allen, verificados a partir de instrumento por ele desenvolvido e embarcado no primeiro satélite americano, Explorer I, lançado em 31 de janeiro de 1958. James Hansen jamais foi aluno formal do Dr. Van Allen, pois temia exibir sua ignorância ao mestre. Mas Dr. Van Allen vislumbrava para aquele jovem estudante uma brilhante carreira científica, a qual teve o privilégio de acompanhar até sua morte em 2006. Em meio a tanta luz, coube a James Hansen propor, em sua tese de doutorado, uma teoria que explicasse o brilho proveniente do planeta Vênus. Em 1967, aos 25 anos, Dr. James Hansen ingressou, como bolsista de pós-doutorado, no Goddard Institute for Space Studies – GISS, subordinado ao Goddard Space Flight Center da NASA. Sua carreira científica poderia ser intitulada de Vênus à Terra.

Sem o efeito estufa, a temperatura média da Terra seria de -18oC, mas graças a ele, esta temperatura é de 15oC. Em 1896 o cientista sueco Svante Arrhenius, Nobel de Química em 1903, avaliou o efeito do aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera terrestre sobre a temperatura média do planeta. Seus cálculos mostraram que a temperatura seria aumentada entre 5 e 6oC, se a concentração do CO2 fosse dobrada. Oitenta anos depois, em 1976, James Hansen publicou seu primeiro trabalho voltado a gases do efeito estufa. Cinco anos depois ele assumiu a chefia do GISS. Em 22 de agosto de 1981, o New York Times publicou que, em um artigo da revista Science, um grupo de cientistas relatara uma tendência de aquecimento do planeta como resultado do efeito estufa, causado por quantidades crescentes de dióxido de carbono. Em consequência dos resultados de seu trabalho, o Governo Reagan reduziu o orçamento de pesquisa do Dr. Hansen em U$ 230 mil, levando-o a dispensar cinco auxiliares e a reduzir sua carga-horária de trabalho de 80 para 40 horas semanais.

Em uma pausa de minha leitura de Censoring Science, assisto na TV a imagens que remetem àqueles blockbusters hollywoodianos que retratam o fim do mundo. Era 26 de novembro e a matéria exibia cenas da aprazível cidade de São Carlos, SP que, naquele final de tarde, recebera 138 milímetros de chuva em menos de uma hora. Para mim aquelas imagens eram o inferno na Terra, mas percebo que, diante delas, pensamos: que pena! …mas seguimos a viver nossas vidas como se não houvesse amanhã. O marketing capitalista é sensível ao comportamento humano e trabalha para aliviar nossas consciências. Assim, a capa do jornal Folha de S. Paulo de 28 de novembro trazia um encarte especial de um fabricante de pneus intitulado “Sustentabilidade como Modelo de Gestão”. Dois dias depois, um anúncio de página inteira exibia uma daquelas estonteantes fotos coloridas da Terra, obtidas do espaço, com o título “É hora de esfriar o planeta”. Era o anúncio de um caderno especial a ser publicado em 14 de dezembro. Essas propagandas, fazem-nos pensar que os grandes conglomerados comerciais estão preocupados com as mudanças climáticas. Em seu livro Tempestades dos meus netos: mudanças climáticas e as chances de salvar a humanidade (2009), Dr. Hansen caracteriza tais ações como greenwashing, ou seja, maquiagem ambiental. O termo é também aplicável aos governos que fingem conferir importância à temática, mas, na prática, praticam greenwashing, dele fazendo uso político. Enquanto brincamos de maquiar o problema, a frequência e a intensidade das catástrofes ambientais só aumentam.

Em novembro de 1987, depois de mais uma audiência sem resultados no congresso dos EUA, Dr. Hansen sugeriu que o próximo encontro se desse em 23 de junho de 1988, que ele já antevia que seria um dos verões mais quentes da história até então. Naquela tarde, sob uma temperatura de 38oC, ele, similarmente ao que Dr. Antônio Nobre fez para a Amazônia, sentenciou: “a continuar nesse ritmo, nós podemos atingir o ponto de não retorno para o aquecimento global”. E continuou: “posso lhes dizer, com 99% de confiança, que as elevações de temperatura observadas recentemente estão relacionadas à ação humana”. No calor daquele verão americano, 32 propostas de leis ambientais foram apresentadas. Nenhuma delas virou lei. Em 1988, 20 bilhões de toneladas de CO2 foram despejadas na atmosfera terrestre. Hoje são mais de 35 bilhões. E subindo… Parte significativa do CO2 é absorvida pelos mares, causando sua acidificação, com consequências danosas para diversos ecossistemas dos quais dependemos. Além do CO2, há o CH4, o N2O e muitos outros. Os dez anos mais quentes da história ocorreram neste século e os sete mais quentes nesta década! Em que pese sua decadente indústria, o Brasil é responsável por uma parcela não desprezível da emissão de CO2, como resultado do criminoso, e ilegal, desmatamento da Amazônia.

Em 30 de novembro o vice-presidente da República e o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações visitaram o INPE. Além do Laboratório de Integração e Testes -LIT, nossas autoridades foram apresentadas ao satélite Amazônia-1, produto da engenharia do INPE e da indústria nacional, a ser lançado em 2021 por um foguete indiano. Mas o objetivo real da visita era anunciar que, entre 1o de agosto de 2019 e 31 de julho de 2020, o INPE detectou o desmatamento de 11.088 km2 da floresta amazônica, o equivalente a três campos de futebol por minuto! Ao reportar a visita de nossas autoridades ao INPE, o site oficial do MCTI informou que o vice-presidente afirmou: “Não estamos aqui para comemorar nada disso, porque isso não se comemora. Mas isso significa que os esforços que estão sendo empreendidos começam a render frutos“. Mourão é o presidente do Conselho Nacional da Amazônia e talvez ao mencionar “frutos” se referisse a um dos trechos do livro Não verás país nenhum (1981), obra-prima do gênio brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, onde se lê:

Por oito anos abastecemos o mundo de madeira. Convencidos de que não havia problemas, aceitamos que vendessem pedaços da Amazônia. Pequenos trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se alterassem os ecossistemas. Até que um dia, as fotos tiradas pelos satélites revelaram a devastação. Todo o miolo da floresta dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos o deserto tomou conta. Quando se viu, estavam no chão 250 milhões de hectares de florestas. Como nunca mais há de haver outra. E continuamos endividados. Mas ganhamos a Nona Maravilha. Ganhamos também tempestades de areia dignas de países desenvolvidos. Não temos mais de invejar os furacões norte-americanos. As tempestades dizimaram o Maranhão e o Piauí. O deserto avançou para o mar”.

O ministro Marcos Pontes não deixou por menos: “Tenho orgulho do trabalho desenvolvido anualmente pelo INPE com uma equipe muito qualificada. Os dados são auditados e por traz [sic] deles existe um trabalho muito intenso. É importante ressaltar que com relação aos anos anteriores já vemos uma redução da tendência de subida o que é muito importante”. Redução na tendência de subida, ministro? Trata-se do maior desmatamento desde 2008! E como que a comprovar a inexistência de correlação entre discurso e prática, nosso ministro informou que o INPE terá seu orçamento de 2021 reduzido em 15%.

Mas voltemos ao livro Censoring Science. Ao final de 2005, Dr. Hansen proferiu palestra em um evento da American Geophysical Union – AGU. Lá, reafirmou que a Terra continuava a aquecer e que as mudanças climáticas resultantes levariam a um planeta distinto daquele que aprendemos a chamar de lar. Frustrado por não vislumbrar políticas públicas voltadas ao mais importante desafio de nossa civilização, ele afirmou: “Interesses econômicos de curto-prazo têm exercido um papel deletério sobre os formuladores de políticas públicas, pouco se importando com o planeta que será herdado por nossos filhos e netos. Somente o público, se bem informado, tem o poder de enfrentar esses interesses. Os cientistas podem desempenhar um papel importante levando ao público, de modo crível e compreensível, as consequências das mudanças climáticas para todos nós”.

E as consequências não tardaram. O setor de comunicação da NASA tentou impedi-lo de falar à imprensa. Ele deu de ombros. Lá, como cá, a Constituição garante ao cidadão o direito à livre expressão. Em sua sagacidade, Dr. Hansen dizia cumprir a missão oficial da NASA: “entender e proteger o nosso planeta”. Nesse interim, o administrador Michael Griffin mudou a missão da NASA para “ser pioneira no futuro na exploração espacial, descoberta científica e pesquisa aeronáutica”. Mas Dr. Hansen tinha outro trunfo: “um engenheiro da NASA descobre um problema no ônibus espacial que pode levar à morte de sete astronautas. O que ele deve fazer, calar-se?” Em 2006, a NASA vivia as consequências de dois acidentes com os ônibus espaciais Challenger (1986) e Columbia (2003). Os relatórios de investigação dos acidentes foram pouco favoráveis às suas práticas internas. Tivesse jogo de cintura, Dr. Hansen poderia ter emprestado o argumento do seu colega Dr. Jay Zwally, climatologista que faz uso de imagens de satélites para medir a massa de gelo polar. Dizia Dr. Zwally: “como um funcionário da NASA eu não estou autorizado a dizer que o homem é o principal responsável pelas mudanças climáticas em curso. Assim, se ao final de minha apresentação você chegar a esta conclusão, que fique claro: a conclusão é sua!”

Em fevereiro de 2006, enquanto dezenas de servidores do INPE trabalhavam dia e noite para tornar realidade a Missão Centenário, Michael Griffin anunciava cortes orçamentários para alguns setores da NASA, para o ano fiscal que se iniciaria em outubro daquele ano. O discurso oficial era o de que os cortes seriam de 1%, mas Dr. James Hansen logo fez suas contas e percebeu que os programas que lhe eram caros, teriam uma redução de 20%. Enquanto o astronauta brasileiro circundava a Terra, Dr. James Hansen fazia circular e-mail no qual explicava as consequências desse corte a colegas: “80% do orçamento são usados para manter a infraestrutura. Os cortes atingirão o desenvolvimento de novas e importantes missões de satélite. Atingirão também a formação de estudantes e jovens cientistas, com implicações futuras terríveis. E isso está acontecendo em um momento em que os dados da NASA estão produzindo resultados espetaculares. Um par de satélites (GRACE), que mede o campo gravitacional da Terra, descobriu que a massa da Groenlândia diminuiu o equivalente a 210 km3 de gelo em 2005 e que sua área com derretimento no verão aumentou 50%. Além disso, foi detectado que a área do Oceano Ártico com gelo de verão diminuiu 20% nos últimos 25 anos. Uma forma de evitar más notícias: parar as medições!

Mas os adversários do Dr. Hansen não lhe davam trégua. Servidores comissionados da NASA o ameaçaram de demissão, mas como cá, lá não se demite um servidor público por ele discordar da política de governo. Nesse imbróglio, cientistas da NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration) e do JPL (Jet Propulsion Laboratory) revelaram passar por similares intimidações ao divulgar seus estudos relacionados às questões ambientais. Anos antes, a imprensa tinha publicado que a Casa Branca estava editando textos de relatórios científicos para que eles parecessem menos alarmantes quanto às consequências do aquecimento global. Como ocorre em qualquer sociedade democrática, o escândalo chegou ao Congresso, levando a audiências nas quais alguns desses atores foram confrontados. Ao final, alguns envolvidos deixaram a Casa Branca e retornaram aos seus setores de origem: a indústria do carvão, petróleo e gás natural!

Chegamos a 2 de dezembro e leio que 2020 será o terceiro ano mais quente da história, desde o início da Revolução Industrial. O moderado secretário-geral da ONU, António Guterres, sentenciou: “a humanidade está em guerra contra a natureza e isso é suicida. A natureza sempre responde e está fazendo isso com fúria”. Mal me recupero dessa notícia e leio que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos deu prosseguimento a uma ação judicial de seis jovens portugueses, com idades variando de 5 a 21 anos, contra os 33 países, 27 deles membros da União Europeia. Esses jovens exigem medidas urgentes contra o aquecimento global. Regressei ao livro Tempestades dos meus netos: mudanças climáticas e as chances de salvar a humanidade (2009), no qual Dr. James Hansen afirma: “A grande batalha dos jovens por seu futuro está só começando. A batalha pelo planeta, certamente, vai ser conduzida em múltiplas frentes. Além do processo eleitoral, existe uma outra opção para obter justiça em nosso sistema democrático: o poder judiciário. Os tribunais podem ter uma visão mais ampla do que os políticos, que se concentram em curtos ciclos eleitorais. O juiz também tem tempo para considerar cuidadosamente um tópico complicado”.

E o Dr. Hansen acertou mais uma vez. A Justiça Federal, que tratou da tentativa de intimidação ao Dr. Antônio Nobre, considerou adequados os esclarecimentos deste, e decidiu pelo não prosseguimento do processo. Mas o problema real continua e a sociedade civil organizada precisa se manifestar de maneiras mais enfáticas.

Em 2013 Dr. Hansen se aposentou da NASA, mas continua atuando como professor na Universidade de Columbia. Aos 79 anos, ele se dedica à esposa, filhos e netos sem esquecer, é claro, sua profissão de fé: a Ciência. Ele se tornou um ativista ambiental já tendo processado, tal qual os jovens portugueses, o Governo dos EUA. Em pleno século XXI, já foi preso em algumas ocasiões por participar de protestos contra a instalação de novas unidades geradoras de energia a carvão. Em 2022 ele publicará O planeta de Sofia, contendo uma série de cartas à Sofia, sua neta. Nessas cartas, ele apresenta uma perspectiva otimista para as novas gerações, mas ressalta que as mudanças só virão com envolvimento pessoal e ação política. Dr. James Hansen é o Galileu de nossos tempos e o seu gigantesco legado científico encontra-se disponível clicando aqui.

Não é difícil encontrar semelhanças entre a perseguição ao Dr. Antônio Nobre e aquela ao Dr. James Hansen, ressaltando que a perseguição se dá não somente aos cientistas, mas às organizações às quais pertencem. Esses cientistas dedicam suas vidas e intelectos a uma causa comum, trabalham 80 horas por semana, desvendam os segredos da natureza, os revelam à sociedade, submetem-se ao escrutínio implacável de seus pares (processo que transforma ciência em Ciência!), chegam a conclusões que podem mudar o futuro da humanidade, se expõem politicamente e … são perseguidos!

Há algo errado com as sociedades que permitem que isto ocorra.

Ontem foi o Dr. Ricardo Galvão, exonerado da direção do INPE em 2019, hoje é o Dr. Antônio Nobre, amanhã … pode ser você.

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