Ciência, tecnologia e aplicações espaciais estão ameaçadas
Ciência, tecnologia e aplicações espaciais estão ameaçadas

Ciência, tecnologia e aplicações espaciais estão ameaçadas

 Martin Niemöller (1892-1984) foi um teólogo protestante (luterano) alemão. Consta que chegou a flertar com o nazismo em sua fase inicial, mas logo passou para a oposição. Foi processado e enviado para o campo de concentração de Dachau, onde permaneceu até o final da guerra. Sobreviveu aos horrores da época, e é o autor deste breve e conhecido texto sobre o nazismo (em tradução livre):

“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.

Como não sou judeu, não me incomodei.

No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.

Como não sou comunista, não me incomodei.

No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.

Como não sou católico, não me incomodei.

No quarto dia, vieram e me levaram;

já não havia mais ninguém que pudesse protestar …”

Este texto permanece com imensa força, a despeito de sua desconcertante simplicidade. Transcende em muito, a época e o contexto que o produziram, constituindo-se em um bravo manifesto contra o autoritarismo de alguns e a omissão de muitos. Com a devida licença e necessária humildade, nele nos inspiramos para dar título a este artigo.

Agora, pensemos em setembro de 2020.

A causa da preservação ambiental, da preservação das espécies em extinção e dos recursos não renováveis, assim como o tema da mitigação das mudanças climáticas que é derivado da questão inicial da preservação é, ou ao menos deveria ser, uma causa universal. Mas não é, infelizmente.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) dedica-se há décadas ao assunto, tendo dado contribuição inestimável para que nossa sociedade e governantes passassem a considerar o assunto com a devida importância.

Seu trabalho se desenvolve em várias vertentes: ciências espaciais, tecnologia espacial, mudanças climáticas, modelagem e previsão do tempo, e variadas aplicações de dados de satélites, sendo que as voltadas à mensuração do desmatamento nos biomas nacionais e à detecção dos focos de queimadas sintetizam, de forma exemplar, o que o INPE é, o que faz e a que veio.

Como tem sido insistentemente noticiado ao longo do último ano, o cumprimento da missão de “mensageiro” da situação ambiental do país no tocante ao desmatamento e às queimadas tem encontrado frontal antipatia no governo federal, o que tem resultado em retaliações na forma de exonerações e cortes em seu orçamento que, inevitavelmente, solapam a capacidade do Instituto de continuar a cumprir sua missão.

Decisões governamentais recentes indicam um padrão em favor da atribuição a outras organizações públicas federais de tarefas desempenhadas pelo INPE. Como exemplo, a alocação ao CENSIPAM de recursos recuperados pela Operação Lava-Jato para a aquisição de satélites radar, no valor aproximado de R$ 145 milhões e, quase simultaneamente, contrato firmado pela Polícia Federal no valor aproximado de R$ 50 milhões com empresa que representa provedor americano de imagens de satélite de alta resolução.

É fato que o satélite radar que tencionam comprar é inadequado para tratar da questão do desmatamento, mas é útil para aplicações militares. No entanto, até o momento, os responsáveis por esta proposta não apresentaram justificativa técnica que demonstre de que forma este instrumento poderia complementar o trabalho que é realizado pelo INPE. Seria mais fácil, simplesmente, admitir que a finalidade deste satélite é atender às necessidades da Defesa, mas aí seria necessário também justificar o desvio de finalidade de recursos originalmente alocados para a questão ambiental amazônica.

Quanto ao caso das imagens, ou serviços, adquiridos pela Polícia Federal, cabe observar que a parcela mais nobre relativa ao trabalho voltado à mensuração do desmatamento nos biomas nacionais não está, nem nunca esteve, na simples aquisição das imagens. Imagens de satélites são, hoje, praticamente commodities que podem ser adquiridas com relativa facilidade e a custo reduzido. O diferencial está na inteligência e na experiência acumulada ao longo de décadas no tratamento desses dados. Ora, a empresa contratada, por mais competente que seja, não dispõe dessa experiência, e levará muito tempo para adquiri-la. Voltamos novamente à questão colocada para o caso do satélite radar – não parece ser de fato o objetivo da sua aquisição complementar o trabalho do INPE. Parece ser, sim, o de adquirir imagens e serviços que atendam às necessidades de natureza policial, que de fato existem, não há dúvida. No entanto, novamente, a questão do INPE e do desmatamento serve como uma “cortina de fumaça”, com as devidas desculpas pelo trocadilho, para justificar a compra.

Nos dois casos, invariavelmente, há um padrão de crítica ao INPE. Em ambos, questiona-se a qualidade técnica de seu trabalho e, os dispêndios por outras organizações teriam o intuito de aprimoramento. A reação contrária a essas decisões é, por muitos, interpretada como uma indevida tentativa do INPE de preservar seu “espaço” no governo. Ao fazê-lo, o INPE tentaria manter exclusividade em certas atividades, em prejuízo da plena ação governamental. Discordamos frontalmente dessa interpretação, e vamos aos fatos.

O INPE tem (ainda) uma sólida base técnica para desenvolver tecnologias espaciais na forma de missões de satélites, como comprovam as variadas missões desenvolvidas e lançadas desde os anos 90. Do lado das aplicações, os métodos e o longo histórico de aquisição e tratamento de dados são uma construção do INPE. Foi ele quem formulou tais projetos, desenvolveu e operou os sistemas até hoje, e, além de tudo, construiu sólida reputação acadêmica e de formação de recursos humanos de alto nível.

Toda esta capacidade está à disposição do país, mas ela está ameaçada de várias formas. Estes riscos vêm, dentre outros, da redução ininterrupta de seus quadros de pessoal, em razão da virtual inexistência de reposição regular de seus profissionais e, também, da interrupção de novos projetos na área de satélites.

Ora, qual seria então a conclusão de um cidadão minimamente esclarecido ao observar que o governo federal, ciente do iminente declínio de uma organização fundada há quase 60 anos, decide que é hora de investir seus recursos em organizações que não contam com a mesma capacidade instalada do INPE, já que as suas missões institucionais são outras – nobres, mas outras. Qual seria sua conclusão ao perceber que, ao fazê-lo, o INPE continuará a declinar e, com alguma sorte e bastante tempo, CENSIPAM e Polícia Federal conseguirão estabelecer internamente a capacidade que já existe no país, e à qual poderiam recorrer a qualquer momento?

Não, não é uma tentativa egoísta de alijar outras organizações da execução de tais tarefas. É, sim, uma desesperada tentativa de evitar que o país perca essa capacidade. E se isto vier a ocorrer, será por muito tempo; quiçá para sempre.

Mais recentemente, em 18 de setembro, o vice-presidente da República, que responde pelo Conselho da Amazônia, defendeu a criação de uma nova organização pública (uma agência?), certamente de natureza militar, para centralizar imagens da região amazônica, nos mesmos moldes do NRO (Escritório Nacional de Reconhecimento) americano. Alega o vice-presidente que os sistemas do INPE são bons, mas “ainda têm falhas”, o que prejudicaria o combate aos ilícitos ambientais na região amazônica, e que essa nova organização faria o mesmo trabalho com menor custo, e também seria mais eficiente.

Criticar o que ainda é uma ideia vaga pode ser injusto. No entanto, basta dizer que o NRO americano, organização de natureza militar, lida com questões eminentemente de segurança nacional, não com questões ambientais, que ficam a cargo de outras organizações daquele país, invariavelmente de natureza civil. Também sabemos que o Calcanhar de Aquiles do combate ao desmatamento está na capacidade de repressão, não na produção de dados e alertas. Mas, enfim, cabe ao senhor vice-presidente defender seus pontos e suas ideias.

No entanto, se tal objetivo vier a se materializar, o INPE inevitavelmente deixará de ser financiado para realizar tais atividades. Como resultado, seu declínio será acelerado e, dificilmente poderá ser revertido no futuro.

Quanto à tal agência, a proposta do vice-presidente seria, para utilizar um termo corrente, uma “solução analógica para um problema digital”. Se recordarmos o que aconteceu recentemente com a gestão dos dados da pandemia da COVID-19, seria a todos instrutivo: em um primeiro momento, o Ministério da Saúde era a fonte primária e inconteste de dados. No momento em que o governo federal decidiu alterar a forma de como os dados eram computados e apresentados, a sociedade se reorganizou e passou a produzir sua própria consolidação da evolução da pandemia. Como resultado, os dados publicados pelo Ministério da Saúde não são mais a referência, e foram, de certa forma, esquecidos. Qual é a lição aprendida? Chama-se credibilidade. Este seria talvez o maior desvio da organização proposta pelo nosso vice-presidente – ter credibilidade.

Infelizmente, este é o cenário que se apresenta. As três vertentes fundamentais que justificam a razão de ser do INPE: ciência, tecnologia e aplicações espaciais, estão todas ameaçadas. É um fato. É, pois, fundamental que nossa sociedade saiba disso enquanto ainda há tempo para atenuar as consequências dessas decisões.

Concluindo, se um dia nos levam os programas de satélites, no outro as atividades voltadas ao meio ambiente, em breve não haverá mais razão para protestar.