Cientista avesso à ribalta eternizado por nova espécie de borboleta
Cientista avesso à ribalta eternizado por nova espécie de borboleta

Cientista avesso à ribalta eternizado por nova espécie de borboleta

De como um cientista avesso à ribalta foi eternizado por uma nova espécie de borboleta: a Diptychophora galvani

Da redação

Como a lagarta se transforma em borboleta? A transformação passa por quatro fases até a borboleta chegar à idade adulta. A larva fica em estado de total repouso por um período que varia de uma semana a um mês e os tecidos do seu corpo vão se modificando. Quando a borboleta está pronta, ela rompe o casulo e libera as asas.”

O professor Ricardo Galvão é um homem discreto, que parece gostar mais de ouvir do que de falar ou anunciar seus feitos. No tempo em que foi Diretor do INPE fez poucas mudanças imediatas na estrutura. Primeiro se reuniu com pesquisadores das diversas áreas e manteve, o quanto possível, as indicações para cargos de confiança do diretor anterior. Como servidor público entendia que os institutos de pesquisa são órgãos de Estado e que precisam de estabilidade e continuidade para que programas de longo prazo não sejam descontinuados. Não se tem notícias de usar redes sociais para autopromoção, nem de postar fotos e vídeos com ministros e presidentes fazendo a apologia de síndicos de plantão.

Sendo esse homem discreto, que vinha trabalhar pedalando sua bicicleta, e bem avesso a pompas e circunstâncias, pode-se imaginar a ira santa que o acometeu quando, no dia 19 de julho de 2019, ouviu seu nome associado à insinuação de que os números elevados de estimativas de desmatamento da floresta Amazônica, divulgados pelo INPE, eram dados adulterados por pesquisadores a serviço de ONGs.

Era ainda o início do atual governo. A destruição do Brasil apenas se esboçara, era mais retórica do que efetiva. Embora houvesse espanto e desgosto, não havia ainda reação da sociedade àquilo que viria a se tornar um dos períodos mais tristes da história do Brasil: mais de 600 mil mortes evitáveis, destruição da Amazônia e Pantanal, estagflação, destruição de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, cultura…

A comunidade científica ficou atônita com o ataque ao INPE e ao seu Diretor. Esperava-se uma reação, fosse do Congresso, do Supremo ou das instituições, contra a terra arrasada de um governo inepto que se apossava sem cerimônia da República tratando-a como seu quintal. Quem sabe uma notinha discreta de apoio do Ministro da pasta…

Quem esperava de Galvão uma reação tempestuosa ao ataque do Presidente, logo percebeu que a “cotovelada” recebida seria devolvida com elegância. Mostrando que o Presidente utilizou linguagem de botequim e que ele, como diretor de uma instituição da estatura do INPE, não iria respondê-la pela imprensa, aguardou que o presidente o chamasse e tivesse a coragem de afirmar, frente a frente, as acusações feitas.

É claro que o inominável não o chamou para conversa alguma. Mentir e fazer insinuações seguidas pela frase “eu não tenho provas” se tornou a marca do Presidente. Mas em sua sede de vingança e seu projeto de destruição do sistema do INPE de monitoramento do desflorestamento, o Presidente delegou ao subserviente titular do MCTI a exoneração do Dr. Ricardo Galvão do cargo de Diretor do INPE, no dia 7 de agosto de 2019, quando este estava em pleno exercício legal de um mandato que só se encerraria 13 meses depois.

Como a maior parte das ações do Governo atual, o tiro saiu pela culatra. No desejo ridículo de vingança, achou que a exoneração do professor Galvão o liquidaria para sempre. Como era de se esperar, o Presidente não tinha a mínima ideia de que o valor de uma pessoa não está no cargo que ocupa, mas em quem ela é. Os cargos, nesses tempos sombrios, acabam sendo frequentemente aceitos pelos infinitamente ingênuos, onipotentes ou com a natureza das larvas, que rastejam, com vocação para se curvarem ao poder de plantão.

Galvão ganhou o status de herói porque o motivo de sua exoneração foi defender o INPE contra os ataques feitos pelo Presidente, defender a equipe de cientistas do INPE, e defender sobretudo, a Ciência. Apenas para constar, o Astronauta Ministro, durante a crise, permaneceu, como sempre, no espaço, e rapidamente nomeou um diretor interino do INPE para o lugar de Galvão, e, há um ano, um novo diretor, selecionado por um comitê de busca, comme il fault.

Mas o Dr. Galvão já tinha escrito seu nome na história, na Ciência. Septuagenário, poderia muito bem já ter se aposentado, para cuidar dos seus e de suas abelhas; mas não, continuava ativo, porque era necessário. Não precisava de seu cargo. O cargo tinha sido consequência de sua história, do seu êxito na direção do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Seu nome não desapareceria na fumaça do tempo, porque seus pares não permitiriam.

Se Galvão já voava alto, o episódio de sua reação às ofensas do Presidente, fê-lo adquirir asas maiores e mais potentes, que o alçaram a voos mais altos. Pois não foram apenas seus pares nacionais e internacionais que o apoiaram. Toda a mídia, corporativa ou independente, nacional e internacional, quis ouvir aquela voz educada, culta e serena que teve a coragem de fazer o que era seu dever, a despeito de sua vocação para a discrição.

Naquele mesmo ano, o Dr. Galvão foi incluído pela revista Nature como um dos 10 cientistas mais importantes do ano de 2019, por sua defesa da ciência contra os ataques do governo ao INPE.

Em 2021, a Associação Americana para o Avanço da Ciência deu ao Dr. Galvão o Prêmio da Liberdade e Responsabilidade Científica.

Recentemente veio a mais bela e poética recompensa: ter se tornado nome de uma nova espécie de borboleta (https://doi.org/10.35929/RSZ.0036) a Diptychophora galvani. Uma borboleta pequena, nativa da Chapada dos Guimarães, uma região assolada por incêndios em 2020. Os botânicos Bernard Landry e Vitor O. Beckerre deram o nome de Galvão à borboleta, em reconhecimento pela sua coragem cívica ao se posicionar sem hesitar em defesa da Ciência e dos cientistas, e em defesa da Amazônia Brasileira. Mas isso não foi tudo. A assembleia geral da Swiss Systematics Society (https://swiss-systematics.ch/en) decidiu, em 5 de novembro de 2021, eleger Diptychophora galvani como a espécie suíça de 2022.

O que não sabia o Presidente, seu servil ministro e seus áulicos subordinados, dentre outras tantas coisas, é que a Ciência é uma construção coletiva, em que o reconhecimento do valor é feito pelos pares. Que o conhecimento científico não se compra como disparos em massa na internet, nem se adquire pelo WhatsApp, ele se conquista com muito estudo, esforço e paixão, e que são raros os cientistas carreiristas que colocam sua biografia em risco por um cargo qualquer.

A postura heróica do Dr. Galvão e o reconhecimento de seu gesto pela comunidade científica e pela sociedade transformaram-se em alento para todos os que acreditam na Ciência, um sentimento de que enquanto houver cientistas que não abdiquem de sua coluna vertebral, nem tudo está perdido. A Ciência é uma atividade que requer compromisso com a verdade dos fatos científicos. Os resultados experimentais precisam ser verificados por vários ângulos e enquanto estiverem em pé, precisam ser aceitos.

A lagarta só se transforma em borboleta quando ela rompe o casulo e libera as asas. Ela passa da condição de verme rastejante para ganhar o mundo, voando e enchendo a natureza de cores e poesia. A praga de vermes que se instalou nas entranhas do Estado Brasileiro está impedindo que novas borboletas desabrochem. Na Ciência, esta praga continua a fazer estragos. Apesar disso, cientistas brasileiros, embora massacrados pela falta de recursos, pelo assédio sem fim, pelo descaso, resistiram, e essa resistência começou quando um cientista ergueu a sua voz. Está na hora de entrarmos nesse coro.