Na última quinta-feira, 02 de julho, faleceu de causas naturais em sua residência na cidade de Tietê, SP, o engenheiro Jayme Boscov, que por décadas liderou o desenvolvimento dos foguetes Sonda III, Sonda IV e VLS (Veículo Lançador de Satélites).
O engenheiro aeronáutico Boscov foi fruto da ideia de Santos Dumont, que em 1918, ao escrever O que eu vi. O que nós veremos, preconizou a criação de uma escola de engenharia, que serviria de base para o estabelecimento da indústria aeronáutica brasileira. Coube ao Marechal do Ar Casemiro Montenegro Filho dar asas à imaginação de Santos Dumont. Primeiro veio o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA, 1950), seguido do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento (IPD, 1954), que se transformou no atual Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE). Foi com a mão de obra formada no ITA que o IPD iniciou suas atividades na área aeroespacial. Egresso do ITA em 1959, o engenheiro Boscov obteve uma bolsa de estudos do governo francês, finda a qual decidiu permanecer naquele país trabalhando no programa de mísseis balísticos intercontinentais e, posteriormente, no projeto do avião supersônico Concorde.
Três semanas antes de o homem pisar na Lua (1969), o engenheiro Boscov retornou ao Brasil para trabalhar no IPD, cujo vice-diretor técnico era Hugo de Oliveira Piva, militar egresso do ITA, que recém-retornara da Caltech (California Institute of Technology), onde obteve dois doutorados. A dupla Boscov – Piva assemelha-se às duplas civil-militar compostas por von Braun – Dornberger e Oppenheimer – Groves, que trabalharam, respectivamente, no foguete V-2 (Alemanha) e no Projeto Manhattan (EUA).
Em 1968, o IPD já voara o primeiro protótipo do Bandeirantes, que levou à criação da Embraer no ano seguinte. Na mesma época, o IPD já desenvolvera os foguetes Sonda I e Sonda II. O próximo passo foi o desenvolvimento do Sonda III, concebido pelo engenheiro Jayme Boscov. Para recuperar o espírito vigente naquela época, reproduzimos trechos da entrevista que engenheiro Boscov concedeu ao Jornal do SindCT em março de 2015:
“Retornei ao Brasil em 1º de julho de 1969, integrando-me ao restrito grupo de não mais que 25 pesquisadores de uma das seções do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento (IPD) do CTA, seção esta que posteriormente se transformou no Instituto de Atividades Espaciais (IAE).”
“Durante todo o mês de agosto de 1969, realizamos estudos preliminares do foguete SONDA III com a participação dos especialistas franceses. Foram analisadas todas as áreas concernentes ao projeto: Estruturas, Aerodinâmica, Propulsão, Rede Elétrica, Trajetografia e Sistema de Segurança, finalizando com um documento englobando todos os estudos. A partir daí, controle rigoroso das atividades técnicas e de gerenciamento, sem dar espaço para “jeitinhos” e “gambiarras” tão difundidos em nossa cultura.”
“Foi uma época de realizações com apoio irrestrito às inovações. Foi uma época áurea! É bom lembrar também do desenvolvimento do avião Bandeirante, que deu origem à Embraer. A dinâmica era de muito trabalho, dedicação, esforço, entendimento e companheirismo de todos, civis e militares, era a mola mestra de todas as atividades.”
As palavras do engenheiro Boscov são ratificadas pelo Dr. Ariovaldo Palmério (Introdução à Tecnologia de Foguetes, 2016, publicado pelo SindCT):
“Na década de 1970, o IAE, então Instituto de Atividades Espaciais, estava crescendo em todos os aspectos. O biestágio SONDA III era conduzido pelo engenheiro Jayme Boscov, e as equipes técnicas necessárias estavam formadas e admitindo novos colaboradores. O ritmo era intenso, e as diversas atividades originavam fatos novos e resultados frequentes. O Diretor do IAE entre 1973 e 1982, o Coronel Aviador Hugo de Oliveira Piva, administrava com autonomia verba da FINEP, que permitia inclusive a contratação de pessoal no regime da CLT. Seu poder de realização era muito superior ao do Diretor do CTA, que administrava os recursos financeiros vindos do então Ministério da Aeronáutica (MAer). Diante do apoio político do MAer e do Governo Federal, o desenvolvimento de foguetes tinha tudo para ser bem-sucedido.”
O primeiro protótipo do Sonda III foi lançado em setembro de 1976, a partir do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI). O Sonda III levou ao espaço cargas-úteis com sistema de controle de atitude e apontamento solar, desenvolvido no Brasil. Em 1979, foi criada a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), que previa o lançamento de um satélite brasileiro, a partir do território nacional, por meio de um foguete desenvolvido no IAE. Daí surgiram o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), o Satélite de Coleta de Dados (SCD, desenvolvido pelo INPE) e o Veículo Lançador de Satélites (VLS), sob responsabilidade da dupla Boscov – Piva. O salto tecnológico do Sonda III para o VLS era gigantesco, levando ao desenvolvimento do Sonda IV, para qualificar tecnologias necessárias ao VLS. Entre 1984 e 1989 foram lançados do CLBI quatro protótipos do Sonda IV.
E por que não decolamos? A década de 1970 foi marcada por duas crises, que fizeram o preço do barril do petróleo saltar de 3 para 34 dólares (equivalentes a 120 dólares atuais). O Brasil precisava importar petróleo para manter o seu crescimento econômico. Para tanto, fez empréstimos em dólar e emitiu moeda no mercado interno. Afetado pela inflação, os EUA elevaram as taxas de juros, que fizeram a dívida externa brasileira crescer significativamente. Na geopolítica, os países desenvolvidos firmaram, em 1987, o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (Missile Technology Control Regime – MTCR, em inglês), que visava limitar, dentre outros, o acesso a tecnologias de foguetes. A partir de então, nossos parceiros tradicionais (França, Alemanha e EUA) fecharam suas portas à venda de tecnologia sensível ao Brasil, que, vale frisar, tinha um projeto nuclear em curso. Também em 1987, o Major Brigadeiro do Ar Hugo de Oliveira Piva deixou a direção do CTA, pondo fim à parceria Boscov – Piva. Na transição do regime militar para o civil em 1985, o país ainda vivia os profundos efeitos dessa crise econômica. A inflação chegou a 3% ao dia e a defasagem salarial decorrente, levou centenas de especialistas a migrarem do IAE para o então próspero mercado privado do setor de defesa de São José dos Campos, que tinha o Oriente Médio como cliente.
Em março de 1990, Collor de Mello, o primeiro presidente eleito após a reabertura democrática, tomou posse, estabelecendo como metas o fim da inflação, a redução dos gastos públicos, a privatização de empresas estatais e a exposição da indústria nacional à concorrência estrangeira. Sob o Plano Brasil Novo, o caráter estratégico das atividades desenvolvidas pelo IAE perdeu relevância e os recursos destinados ao desenvolvimento do VLS escassearam. O IAE foi obrigado a impor um Plano de Demissão Voluntária (PDV) aos seus servidores, bem como adotar regime reduzido de trabalho. Para completar, em janeiro de 1992, a gerência do projeto VLS foi transferida do engenheiro Boscov ao novo diretor do CTA, que em sua permanência de apenas um ano aplicou um “choque de gestão” ao projeto. Esse conjunto de fatores alterou sobremaneira a motivação dos servidores do IAE. Numa tentativa de reverter esse quadro, criou-se o movimento “Decola IAE,” mas a decolagem já não era possível, em função da ausência de combustível, tripulação e comandante, representados, respectivamente, por recursos financeiros, quadro técnico suficiente e pelo engenheiro Boscov.
Mas o VLS não foi a única vítima desse Brasil moderno preconizado por Collor. Sob o Plano Brasil Novo não houve espaço nem para ele, que deixou o governo ao final de 1992 acusado de corrupção. Mas o modelo neoliberal por ele inaugurado veio para ficar e o Brasil, que, por meio de endividamento externo, cresceu à taxa média de 7% ao ano entre 1930 e 1980, passou a crescer à média de 2% ao ano, no período compreendido entre 1981 e 2019. A indústria, que em 1980 representava 35% do PIB, hoje representa meros 11%, percentual equivalente a 1910. Portanto, o fim do VLS não representou o abandono de mais um projeto governamental, mas o fim de um projeto de nação, cuja causa é oferecida pela Agência Senado Federal, ao se referir ao Orçamento Federal de 2020:
“O valor total do Orçamento foi de R$ 3,8 trilhões. Destes, R$ 1,9 trilhão refere-se a amortizações, juros, refinanciamentos e encargos financeiros da dívida pública. Isso correspondeu a 50,7 % do total do Orçamento de 2020, maior volume já gasto na história do país em manutenção anual da dívida pública.”
De acordo com a mesma fonte, o orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações este ano é de R$ 11,7 bilhões, correspondente a 0,3 % do Orçamento Federal.
Muito embora anunciado em 2016, o fim do Projeto VLS se deu em 1992, quando o engenheiro Boscov deixou de liderá-lo. Os lançamentos ocorridos em 1997 e 1999 se deram em virtude do legado deixado pelo engenheiro Boscov, contudo, sua velocidade foi insuficiente para fazer o projeto decolar. De diversas formas, o Relatório da Investigação do Acidente Ocorrido com o VLS-1 V03 (2004), comandado pelo digno Brigadeiro do Ar Marco Antônio Couto do Nascimento, resume esse processo. Em outubro de 1995, o engenheiro Boscov deixou o IAE, e depois de um período desenvolvendo estudos para a Agência Espacial Brasileira (AEB), se mudou para Tietê, SP, onde se dedicou à família, à arte e à natureza (vide o artigo A DESPEDIDA DO PAI DOS FOGUETES escrito pela família Boscov). Muito embora tenha recebido muitas condecorações em vida, o engenheiro Boscov jamais clamou para si as contribuições que ofereceu em prol do desenvolvimento de seu país, que incluem: i) introdução de técnicas de gerenciamento de projetos espaciais, já na década de 1960; ii) formação de uma geração de especialistas, no Brasil e no exterior; iii) produção do aço de ultra resistência 300 M no parque industrial brasileiro; iv) participação de mais de 100 indústrias no desenvolvimento do VLS; v) lançamento de dezenas de foguetes de sondagem; vi) envolvimento da comunidade científica e acadêmica nacionais no Projeto VLS; vii) cooperação com o INPE na realização de experimentos na ionosfera terrestre; viii) desenvolvimento de sistemas de guiamento e controle; ix) cooperação com diversas organizações estrangeiras; x) construção da Usina Coronel Abner, capaz de realizar carregamento e testes de motores-foguetes de grandes dimensões; e xi) exemplo de competência técnica e caráter aos seus liderados.
Aqueles que não tiveram o privilégio de conhecer o engenheiro Boscov, poderão verificar suas realizações nas dependências do Memorial Aeroespacial Brasileiro (MAB), cuja maior parte do acervo constitui seu legado. Prestes a completar 88 anos, o engenheiro Jayme Boscov regressou ao lugar ao qual sempre pertenceu: ao mundo das estrelas.
A DESPEDIDA DO PAI DOS FOGUETES
Por Edwige, Adriana e Jaime Alex Boscov
Nesta última quinta-feira dia 2 de julho, nosso querido Jayme Boscov encerrou sua passagem neste mundo que conhecemos. Esposo, pai, gestor e amigo. Visionário, inteligente, doce e justo. São tantas as qualidades deste homem de coração grande e acolhedor, que fica difícil listá-las.
Do menino, filho de imigrantes que corria descalço nas ruas de Pinheiros em São Paulo, ao engenheiro aeronáutico formado no ITA em 1959, culminando com a direção do projeto VLS, foram muitos percalços e conquistas.
Encontrou sua companheira de vida Edwige, em 1967, na França, quando era engenheiro trabalhando em Bordeaux na Aerospatiale. Nesses 54 anos juntos, teve dois filhos, Adriana e Jaime Alex, e dois netos, Vitor e Lucas. Dedicou-se, ao violino, à arte da cerâmica e tinha paixão pela flora brasileira. Viajante do mundo, decidiu viver em Tietê, uma pacata cidade de interior, onde descansou e ficou mais próximo da natureza que ele tanto amava.
O DCTA, o IAE e toda a vida dedicada à tecnologia do espaço foram grande parte de sua vida. Muitos de sua equipe viraram amigos para a vida, parte da família. Foram tantos que ele inspirou a ser melhores, a buscar o desenvolvimento e o crescimento como profissionais e como pessoas.
Homem ético, justo, exigente e amoroso ao mesmo tempo. De um sorriso doce e palavras duras, sempre buscava fazer o melhor para ele, para os outros e para o país.
Pai dos foguetes, von Braun brasileiro, descanse em paz sabendo que seu legado nessa passagem pela Terra ficará para sempre marcado na história e em nossos corações.
A família agradece as homenagens, palavras, orações e pensamentos que chegam de todo o mundo em sua despedida.
Entrevista com Jayme Boscov
Em maio de 2015, Jaime Boscov concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal do SindCT.
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