Do Rubicão à Linha de Karman
Do Rubicão à Linha de Karman

Do Rubicão à Linha de Karman

Consta que o rio Rubicão, pequeno curso d’água italiano ao norte de Roma, era tido como o limite que não poderia ser ultrapassado pelos generais romanos acompanhados de suas tropas ao retornar de campanhas ao norte do país. Tal proibição, da época da República, era lei e visava garantir a estabilidade do poder central, que era civil. Júlio César atravessou o Rubicão em 49 A.C., precipitando a queda do regime. Consta também que ele teria então dito a famosa frase “a sorte está lançada”. O ato e a frase são, além de fatos históricos pivotais para a história da humanidade, fontes permanentes de ensinamento.

Avançando 2000 anos, consta que a Linha de Karman seria a imponderável separação entre a atmosfera e o espaço exterior. Embora não seja unanimemente adotada, a maioria dos especialistas reconhece os 100 km de altitude acima do nível do mar como sendo este limite. Ultrapassá-lo seria, simbolicamente, conquistar o espaço, feito almejado por muitas nações que investem em programas espaciais.

Mas, afinal, o que este rio e esta linha teriam a ver um com o outro? Vejamos.

O Programa Espacial Brasileiro remonta ao início dos anos 60, criado por iniciativa de militares e civis visionários, inspirados pelos feitos, de americanos e soviéticos, alcançados no final da década de 50 e anos posteriores. Por muitos anos este programa esteve sob controle militar, não por coincidência durante o regime que vigorou no Brasil após 1964 até meados dos anos 80.

Mesmo durante o regime militar houve o tácito reconhecimento de que certas áreas do programa deveriam ser conduzidas por civis, sendo o exemplo mais flagrante o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE que, com a exceção de seu fundador, que era militar da reserva, sempre foi dirigido por civis. O INPE completará 60 anos este ano.

Tal arranjo não era uma concessão, vinha muito do reconhecimento de que programas espaciais de sucesso, como o caso do americano, eram inerentemente conduzidos por organizações de natureza civil, lideradas por civis, nas quais a lógica da meritocracia imperava, em lugar da fidelidade imposta pela hierarquia fardada.

Ocorre que vivemos tempos distintos no Brasil atual, e aqui não falamos da anormalidade da pandemia que assola nosso sistema de saúde, nossa economia e nossa política. Falamos sim da presença não usual de militares em cargos tradicionalmente ocupados por civis. Temos, como paradigmática, a estrutura atual de comando e controle (talvez estes sejam os termos mais adequados) do Ministério da Saúde, inteiramente militarizada. Mas há outros casos.

O Programa Espacial Brasileiro sempre foi conduzido por um sistema parte civil, parte militar. Com a extinção da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais – COBAE, em 1994, e a criação da Agência Espacial Brasileira – AEB, também em 1994, a primeira com natureza militar e a segunda civil, nosso programa espacial ganhou feições semelhantes às dos programas espaciais conduzidos pela maioria das nações.

Na divisão de cargos que vigorou desde então, ficaram os civis com o comando da AEB, do INPE, assim como dos postos superiores da Ciência e Tecnologia e acima dela na estrutura de governo. Continuaram os militares responsáveis pelo Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial – DCTA e pelos órgãos a eles associados com vinculação com o programa espacial, como o Instituto de Aeronáutica e Espaço – IAE e o Centro de Lançamento de Alcântara – CLA.

Grosseiramente coube aos civis a gestão do programa espacial e o desenvolvimento de satélites e suas aplicações. Aos militares coube a responsabilidade pelo desenvolvimento de lançadores e bases de lançamento.

Mas então o que mudou? Ocorre que, no momento presente, todos os cargos estratégicos do Programa Espacial Brasileiro estão ocupados por militares, da ativa e reserva, independentemente da natureza civil das organizações. Observando apenas o topo da hierarquia, são hoje ocupados por militares os postos outrora civis de Ministro da Casa Civil, da Defesa, da Ciência, Tecnologia e Inovações, e também de Presidente da AEB e o Diretor do INPE, este último em caráter interino. A eles juntam-se os postos intrinsicamente militares de Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, de Comandante da Aeronáutica, assim como dos postos de comando dos órgãos militares a ele vinculados, todos com voz ativa no Programa Espacial. Dentre todos os cargos citados, o de Diretor do INPE encontra-se em processo de indicação por comitê de busca constituído pelo MCTI.

Os indicados para o cargo de Diretor do INPE ao longo de seus quase 60 anos de existência, e particularmente após a instituição do referido mecanismo de comitê de busca, sempre foram civis. Acreditamos não se tratar de exclusão deliberada de militares que eventualmente se candidataram, mas da natural afinidade de cientistas civis ao cargo maior daquele Instituto.

O processo de escolha de Diretor do INPE está prestes a ser completado. Seu atual interino, dos quadros da reserva da Aeronáutica, provavelmente se candidatará. A escolha final, dentre os elencados na lista tríplice, será feita por membros igualmente militares que hoje integram o governo federal. Independentemente dos méritos do atual diretor interino, fica a preocupação de ver o ato de escolha e efetivação do novo Diretor cruzando o Rubicão, o que levaria a ter todas as posições de nosso programa espacial efetivamente em mãos militares.

Em nossa opinião, deveriam os militares se concentrar na missão que lhes foi atribuída ainda nos primórdios de nosso programa espacial – a do desenvolvimento de um lançador nacional, vetor que nos levaria a conquistar e ultrapassar a Linha de Karman, permitindo enfim que fosse realizado o lançamento de um satélite brasileiro a partir de uma base em nosso território, por um lançador nacional.

Cruzar a Linha de Karman trará o reconhecimento certo e justo. Cruzar o Rubicão, talvez não. Caberá à história julgar.