O Fundo Nacional sobre Mudança do Clima foi criado em 2009 com a finalidade de financiar projetos, estudos e empreendimentos que visem à redução de emissões de gases de efeito estufa e à adaptação aos efeitos da mudança do clima.
Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente – MMA, o Fundo Clima disponibiliza recursos em duas modalidades, reembolsável e não-reembolsável, administradas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e pelo MMA, respectivamente.
Partidos de esquerda (Partido Socialista Brasileiro – PSB, Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, Partido dos Trabalhadores – PT e Rede Sustentabilidade) ajuizaram uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, devido à omissão do governo federal em adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, indevidamente paralisado em 2019 e 2020, bem como por diversas outras ações e omissões na área ambiental que estariam levando a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental.
O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 708, convocou uma audiência pública, realizada nos dias 21 e 22 de setembro, com integrantes do governo federal, organizações da sociedade civil, institutos de pesquisa, acadêmicos, empresários e ONGs como Greenpeace e WWF.
O deputado federal Alessandro Molon (PSB), representando os partidos que ajuizaram a ADPF 708, ressaltou a necessidade de reativar o funcionamento do Fundo do Clima e restaurar sua estrutura de governança, com participação da academia, do setor privado e da sociedade civil organizada. Para o deputado, existe uma “clara e permanente política de omissão diante da destruição ambiental” do governo federal.
Diante do cenário de devastação ambiental, “a resposta do governo deveria ser uma verdadeira guerra contra o desmatamento e as mudanças climáticas. Mas, ao contrário, esse cenário ambiental devastador só tem produzido inação e esvaziamento das políticas de comando e controle na área”, afirmou Molon.
O pesquisador Carlos Afonso Nobre é uma das maiores referências em estudos sobre o aquecimento global e um dos cientistas brasileiros mais conhecidos no mundo. Foi chefe do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE, titular da Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI, diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, presidente do Conselho Diretor e vice-presidente do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas – IPCC, citando apenas algumas de suas atuações em organismos de defesa do meio ambiente.
Nobre pontuou sua participação na audiência pública com discurso em favor da urgente preservação da Amazônia e da criação de um “New Deal” ambiental para o Brasil, com a geração de empregos em atividades sustentáveis na Amazônia e agregação de valor em produtos da floresta. “É necessário um novo paradigma de desenvolvimento para a Amazônia”, afirmou.
Segundo Nobre, a Amazônia está próxima do ponto de “não retorno”, ou seja, de perder totalmente a sua capacidade de recuperação. Ele explica que, numa escala de destruição, a floresta Amazônica está com 17% de seu território desmatado. Se o índice atingir a marca de 25%, a floresta perde sua capacidade de regeneração.
Nobre alerta ainda para o risco de “savanização” da Amazônia: a transformação da mata original em uma vegetação pobre em diversidade, com gramíneas e poucas árvores espaçadas, semelhante à savana africana ou ao cerrado. Para impedir essa possível catástrofe ambiental, Nobre propõe a combinação entre tecnologias e o aproveitamento dos ativos biológicos da floresta.
Representando o governo Bolsonaro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional – GSI, Augusto Heleno fez declarações polêmicas e, seguindo o tom adotado por Bolsonaro em seu discurso na ONU, desqualificou os dados sobre desmatamento e queimadas na Amazônia, além de sugerir que tudo não passa de uma articulação para derrubar o governo.
“Não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar tenham sucesso no seu objetivo principal, obviamente oculto, mas evidentemente claro para os menos inocentes, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”, afirmou.
A teoria da conspiração difundida pelo governo também alega que as ONGs que denunciam o desmatamento utilizam dados falsos. “As ONGs têm por trás potências estrangeiras para nos apresentarem ao mundo como vilões do desmatamento e do aquecimento do planeta. Pior, usam argumentos falsos, números fabricados e manipulados e acusações infundadas para prejudicar o Brasil”, disse.
Para finalizar, o general Heleno tentou redimir a omissão do governo na atuação contra o combate às queimadas: “não há comprovação científica de que o aumento de incêndio nas florestas primárias decorra de inação do governo. Na verdade, elas têm a ver com fenômenos naturais, cuja ação humana é incapaz de impedir”, finalizou.
Também participou da audiência pública a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, Sônia Guajajara. Para ela, o governo protege invasores e desmatadores “Podemos dizer que é um governo extremamente perigoso, porque acaba questionando dados e, quando esses dados não condizem com seus interesses, tentam imediatamente omitir a verdade ou punir e exonerar responsáveis (…) Por isso que a gente diz que é um governo perigoso, porque acaba agindo em favor de quem está destruindo, de quem está, de fato, explorando.”
Importante ressaltar, aqui, parte do discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, no dia 22 de setembro, quando demonstrou claramente não ter conhecimento da magnitude das queimadas no país e ainda cometeu um, entre tantos outros, grande engodo, ao afirmar que “nossa floresta é úmida e não permite propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.”
O físico e engenheiro Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, iniciou sua apresentação rebatendo o Gal. Heleno e o tratamento dado pelo governo às instituições de pesquisa científica: “com relação às mudanças climáticas, o General Augusto Heleno Pereira, mencionou que o efeito antrópico sobre o aquecimento global ainda é contestado por muitos cientistas. (…) Infelizmente, esse tipo de afirmação é às vezes mal interpretado pelos cidadãos comuns, desconhecedores da metodologia científica, como uma comprovação de que o efeito antrópico nas mudanças climáticas é categoricamente negado por parte da academia. (…). Mas, não há nenhum resultado sólido, que possa ser testado independentemente, que comprove a não existência do efeito antrópico no aquecimento global. Os resultados positivos produzidos, até recentemente, no monitoramento e controle do desmatamento em vários biomas brasileiros, se devem ao trabalho árduo e dedicado de várias instituições nacionais, em particular, IBAMA, ICMBio e INPE. Por isso, é com grande tristeza que vemos a forma como essas instituições são tratadas no atual governo.”
Galvão também se manifestou contra a criação da Agência Nacional de Monitoramento do Desmatamento, proposta pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. “O vice-presidente está transmitindo uma ideia confusa do que seja monitoramento da Amazônia, embaralhando aplicações militares com civis. Retirando a atividade do monitoramento do Inpe e a colocando sob a tutela de um órgão militar, a credibilidade internacional dos dados seria bastante afetada”, afirmou.
A pesquisadora Thelma Krug, ex-secretária nacional adjunta da Secretaria de Programas e Políticas de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e ex-secretária nacional da Secretaria de Mudança Climática e Qualidade Ambiental, é atualmente a vice-presidente eleita do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC. Ao iniciar seu discurso na audiência pública, Thelma fez questão de ressaltar que “a ciência baseia-se em observações e evidências, e as observações do sistema climático incluem, tanto as obtidas por medidas diretas, quanto a partir de dados de inúmeros satélites e outras plataformas”.
A pesquisadora informou dados dos últimos relatórios emitidos pelo IPCC, citando exemplos assustadores de alterações climáticas, como aumento da temperatura dos oceanos, derretimento de geleiras, aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e de como a atividade humana tem contribuído para o aquecimento global. Thelma também explicou como essa realidade causa impactos relevantes, como secas, queimadas, surtos de pragas e aumento do volume dos oceanos. “A mudança do clima futuro será resultado da redução substantiva, sustentada e tempestiva das emissões de gás de efeito estufa em todos os setores da economia”, afirmou.
Sobre a atuação do atual governo brasileiro em relação ao meio ambiente, a pesquisadora não economizou palavras: “não faltam desculpas neste governo para justificar o injustificável. Parte-se primeiro da negação. Em seguida, da desqualificação de dados oficiais, particularmente os do INPE, tanto do desmatamento anual, quanto das queimadas, que sempre serviram como base para a construção de políticas públicas informadas. Infelizmente, este governo não tem se preocupado em buscar entender os dados que critica; não tem se preocupado em consultar os especialistas que, há anos, se debruçam para desenvolver sistemas que permitam gerar o melhor dado possível para o país, visando apoiar a melhor tomada de decisão.”
Para finalizar seu discurso, Thelma Krug mencionou o fato de o governo estar planejando a compra de um satélite por R$ 145 milhões, enquanto descredita suas instituições científicas: “de nada adianta o governo investir em mais imagens, em mais satélites, se não consegue digerir nem o que tem hoje à mesa. Com o desmonte do IBAMA, com as restrições para ações efetivas dos órgãos ambientais em campo, com a proibição da queima dos equipamentos utilizados pelos desmatadores criminosos, com a revogação do decreto que não permitia a expansão da cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal, com o estímulo a atividades de mineração ilegal em terras indígenas … Excelência, o que esperar? Não haverá plano, não haverá dado, não haverá discurso, não haverá promessa que nos leve a um final feliz. Temos que ser realistas.”
Joana Stezer, pesquisadora e professora do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, da London School of Economics and Political Science, relacionou os países que já sofreram processos por não cumprirem sua própria legislação ambiental e foram condenados a propor (e agir) de forma mais efetiva em seus governos.
Setzer afirmou que a tendência, tanto no Brasil, como ao redor do mundo, é cidadãos, organizações e instituições competentes continuarem a trazer ações judiciais contra governos que não têm tratado as mudanças climáticas com a seriedade e urgência que o tema exige.
“O Fundo Clima foi criado por um ato do Legislativo (a Política Nacional sobre a Mudança do Clima) com o objetivo de (i) assegurar recursos e (ii) financiar estudos e projetos que visem à mitigação e à adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
Assim, não estamos diante de uma lacuna ou ausência de instrumento legal, e sim diante de uma política inefetiva.
Constatada a ausência injustificada de repasse ou destinação de recursos ao financiamento de estudos e projetos, configura-se uma situação de ilegalidade e omissão constitucional.
A atuação do Judiciário, nesse sentido, constitui uma “resposta do Estado” proporcional à “falha do governo”, e é destinada a restaurar a integridade do ordenamento jurídico.
Apontar a falha do governo não é o mesmo que decidir pelo governo. O presente processo, não pede a esse Tribunal nada além do que reconhecer a falha do governo e garantir que medidas estatais sejam tomadas de forma eficiente.
Como já destacado diversas vezes por esse Tribunal, o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública adote medidas que assegurem direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.”
Após os dois dias de intensos discursos na audiência público, o ministro Barroso, em seu pronunciamento de encerramento, afirmou que “proteção ambiental não é escolha política, é dever constitucional”.
O ministro afirmou que a audiência contribuiu para extrair alguns fatos objetivos e incontroversos, entre eles o de que o desmatamento ilegal e as queimadas causadas por ação humana cresceram expressivamente em 2019 e, “ainda mais,” em 2020.
Além disso, Barroso comentou que, até a propositura da ADPF 708, o Fundo Clima não havia aprovado o plano de investimento nem alocado seus recursos nas finalidades legais.
Resta, agora, aguardar a decisão do STF sobre a ADPF 708 e torcer, já que não se pode esperar muito, para que o governo retome o funcionamento do Fundo Clima e invista em ações verdadeiras de proteção ao meio ambiente, principalmente no combate ao desmatamento e às queimadas.
Veja a íntegra dos discursos de:
Ricardo Galvão
Ciência e Políticas Públicas
A Questão do Aquecimento Global e Preservação da Amazônia
Excelentíssimo Senhor Ministro Luís Roberto Barroso, colegas expositores e todos aqueles assistindo esta Audiência Pública.
Quero em primeiro lugar congratular o Ministro Barroso por esta iniciativa, que certamente ficará registrada como um exemplo paradigmático da correta forma republicana de analisar grandes questões nacionais e propor soluções com ampla discussão pela sociedade. Tendo tido a oportunidade de o conhecer pessoalmente em um evento na École Polytechnique, em Palaiseau, no ano passado, quando conversamos sobre a questão climática, e lido seu artigo publicado na Revista de Direito da Cidade, em colaboração com Patrícia Campos Mello, tenho certeza que, sob sua batuta, os resultados deste evento serão extremamente valiosos para a construção de uma política ambiental que coloque o país nos trilhos do desenvolvimento sustentável e socialmente justo.
Programei minha apresentação para inicialmente fazer uma discussão mais detalhada dos fundamentos científicos que norteiam a ampla percepção moderna do efeito antrópico nas mudanças climáticas e aquecimento global, a partir da Revolução Industrial. No entanto, na abertura do evento, o Ministro Barroso já fez uma breve e correta explanação do modelo de Arrehnius e Calendar sobre o efeito estufa, e várias apresentações tangenciaram este tema. Assim, em benefício da presteza de minha manifestação e foco nos assuntos que considero mais diretamente relevantes aos objetivos desta audiência pública, abri mão da exposição visual, limitando-me à comunicação oral.
Com relação às mudanças climáticas, o General Augusto Heleno Pereira, mencionou que o efeito antrópico sobre o aquecimento global ainda é contestado por muitos cientistas. De facto, há cientistas de renome que questionam alguns resultados de modelos climáticos, que são baseados em simulações computacionais complexas e que, de um ponto de vista matemático, constituem um problema mal condicionado de previsões futuras baseadas em soluções de equações diferenciais com condições iniciais. Infelizmente, esse tipo de afirmação é às vezes mal interpretado pelos cidadãos comuns, desconhecedores da metodologia científica, como uma comprovação de que o efeito antrópico nas mudanças climáticas é categoricamente negado por parte da academia. Aliás, esse tipo de reação foi recentemente observado no episódio da suspensão dos testes da vacina contra o Covid-19, desenvolvida pela Universidade de Oxford.
Essa é uma percepção equivocada. Toda teoria científica bona fide tem que ser falseável, ou seja, tem que ter embutida em si os fatores que podem ser testados, corrigidos, modificados ou aprimorados. Mas isso tem que ser feito sempre seguindo a sistemática do método científico, através da apresentação de resultados sólidos ou argumentos lógicos que contradizem o modelo, e não simples opiniões subjetivas. Na realidade, os modelos climáticos evoluíram muito nas últimas duas décadas, em função de críticas feitas dentro do método científico. Mas, não há nenhum resultado sólido, que possa ser testado independentemente, que comprove a não existência do efeito antrópico no aquecimento global.
Os resultados positivos produzidos, até recentemente, no monitoramento e controle do desmatamento em vários biomas brasileiros, se devem ao trabalho árduo e dedicado de várias instituições nacionais, em particular, IBAMA, ICMBio e INPE. Por isso, é com grande tristeza que vemos a forma como essas instituições são tratadas no atual Governo.
Em particular, o INPE voltou a ser fortemente criticado por autoridades governamentais e várias iniciativas estão sendo adotadas para diminuir seu protagonismo no programa espacial brasileiro e na atividade de monitoramento dos biomas nacionais por satélites de observação da terra. Infelizmente, em sua manifestação, o Ministro Marcos Pontes, apesar de corretamente mencionar que os dados do instituto são auditados e transparentes, evitou contestar as críticas de forma mais veemente, apresentando um cenário rosado para o instituto. Por isso, com base em minha experiência de quase três anos como diretor desta grande instituição nacional, julgo oportuno discorrer sobre as dificuldades atuais que têm grande relevância para a execução da política ambiental brasileira.
As principais críticas feitas mais recentemente ao INPE vieram do Vice-Presidente, dizendo que os sistemas DETER e PRODES não são satisfatórios e nem modernos, utilizando técnicas ultrapassadas para o reconhecimento de imagens, sem empregar inteligência artificial. Acrescenta que os dados não são precisos quando há coberturas de nuvens, porque não são utilizadas imagens de satélites que empregam radar, e que não há controle da lealdade de seus servidores, que dão preferência à divulgação de dados que prejudicam o governo.
Esta última crítica parece que foi esvaziada, pelo menos superficialmente, já que o Vice-Presidente não se retratou da acusação leviana que fez, após sua conversa com o atual Diretor do INPE, que lhe informou que os dados do DETER são publicamente disponibilizados de forma aberta (facto este que eu já havia claramente esclarecido por ocasião do embate que tive com o Presidente da República, no ano passado).
Com relação às duas primeiras críticas, o Vice-Presidente está propondo a criação de uma agência nacional para centralizar os dados do desmatamento, sob a gestão do CENSIPAM, e já foi aprovada a compra de um satélite SAR (Radar de Abertura Sintética) para o mesmo órgão, pertencente ao Ministério da Defesa. Essas duas decisões terão implicações bastante negativas na atividade de monitoramento de desmatamentos e queimadas na Amazônia, como argumentarei em sequência.
Antes, porém, é necessário também mencionar o ataque ao INPE vindo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, com relação à compra do sistema fornecido pela empresa Planet para monitoramento de todo o território nacional. Nomeadamente, a Polícia Federal declarou na imprensa que “técnicos do Inpe usam de desonestidade intelectual para desinformar a imprensa e conseguir impedir que novos sistemas sejam contratados”.
Começo por comentar a proposta de criação da agência nacional para centralizar os dados do desmatamento. Características importantes do sistema nacional de monitoramento do desmatamento da Amazônia, razão de sua renomada credibilidade internacional, pelo menos até o presente, são a grande qualificação dos cientistas do INPE, comprovada pela alta taxa de citações de seus trabalhos científicos, sua independência em relação aos órgãos fiscalizadores, e a divulgação aberta e gratuita dos dados à sociedade e a outras instituições.
O CENSIPAM é um órgão militar e, devidamente reconhecendo seus bons serviços com relação ao sistema de vigilância da Amazônia, não tem como missão o monitoramento amplo de desmatamento e não disponibiliza abertamente seus dados. De facto, não se tem conhecimento de divulgação pública, aberta e contínua de alertas de desmatamento pelo CENSIPAM, embora forneça dados bastante úteis ao IBAMA e ICMBio.
Ao propor que a nova agência seguiria o modelo da agência americana NRO, o Governo está claramente indicando a intenção de controlar as atividades de observação da Terra sob a óptica das aplicações militares. Pelas leis americanas, agências de inteligência como NSA, CIA e NRO não podem atuar dentro do território dos EUA.
Os satélites operados pela NRO são de alta resolução, dirigidos para alvos militares (https://www.nro.gov/). O monitoramento ambiental civil por sistemas satelitais é conduzido por vários outros órgãos nos EUA, inclusive institutos universitários, com financiamento parcial da NASA. Portanto, em sua proposta, o Vice-Presidente está transmitindo uma ideia confusa do que seja monitoramento da Amazônia, embaralhando aplicações militares com civis.
Retirando a atividade de monitoramento do INPE e a colocando sob a tutela de um órgão dentro da hierarquia militar, a credibilidade internacional dos dados seria bastante afetada. Além disso, um efeito indesejável poderá ser a obstrução ou dificuldade de sua análise por outros órgãos e agentes públicos e ou privados, inclusive universidades e programas de pós-graduação (cerca de mil e duzentos trabalhos acadêmicos já foram produzidos com dados dos sistemas DETER e PRODES).
Com relação à crítica que o INPE utiliza técnicas ultrapassadas para o reconhecimento de imagens, o Vice-Presidente fez outra acusação leviana e injusta, talvez por desconhecimento. A grande precisão dos dados fornecidos pelo INPE, que alcançam mais de 95% no sistema PRODES, é devida à metodologia de validação de suas imagens por especialistas de alta qualificação técnica.
Tal grau de precisão é dificilmente alcançado utilizando apenas métodos de inteligência artificial. Mas isso não significa que também não sejam empregados métodos avançados, utilizando aprendizado por máquina.
Ao contrário, os pesquisadores do INPE desenvolveram e estão aprimorando o sistema Brazil Data Cube, com o objetivo de criar cubos de dados multidimensionais prontos para análise, a partir de imagens de média resolução espacial de satélites de observação da Terra, para todo o território brasileiro, e gerar informações de uso e cobertura do solo utilizando aprendizado de máquina e análise de séries temporais de imagens de satélites.
Um produto já disponível desse projeto é o SITS – software livre que suporta doze métodos diferentes de aprendizado de máquina para analisar imagens dos satélites Sentinel, Landsat e CBERS. O sistema DETER Intenso, mencionado pelo Ministro Marcos Pontes, é outro produto desse projeto.
Recentemente, o Governo decidiu aportar recursos substanciais, recuperados pela Operação Lava-Jato, para compra de um satélite SAR pelo Ministério da Defesa. Devido à decisão do Supremo Tribunal Federal de que esses recursos sejam aplicados na preservação da Amazônia, o MD tem procurado justificar essa aquisição afirmando que o satélite será utilizado para aprimorar os serviços prestados pelo INPE. No entanto, não foi disponibilizado um projeto técnico da proposta, com participação dos especialistas do INPE. Além disso, quando necessário, o INPE utiliza imagens de radar dos satélites Sentinell, da Agência Espacial Europeia, fornecidas gratuitamente.
O satélite proposto opera na banda X de micro-ondas, que não é a mais apropriada para monitoramento do desmatamento de florestas. No ano passado, em colaboração com o Comando da Aeronáutica e a Agência Espacial Brasileira, o INPE criou um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de desenvolvimento nacional de um SAR operando na banda L, muito mais adequada para imageamento de florestas e que atende também demandas da Defesa.
O relatório final dos trabalhos foi encaminhado à AEB no final do ano. Ao priorizar a aquisição de um satélite no exterior e não seu desenvolvimento no país, o Governo está agindo contra o progresso da indústria aeroespacial brasileira.
Finalmente, é importante comentar o ataque feito pela Polícia Federal. O INPE nunca se manifesta espontaneamente sobre sistemas adquiridos por outras instituições; apenas responde a questionamentos que lhe são enviados, via comunicação direta de outros órgãos (MP, Procuradorias, Parlamento, etc), bem como através da Lei de Acesso à Informação. Tais respostas são todas registradas nos canais oficiais.
O sistema a ser fornecido pela empresa Planet ao Ministério da Justiça e Segurança Pública é baseado em uma constelação de 130 nano satélites, que, de facto, permite imagens com resolução de 3X3m2, que provavelmente atenderá as demandas da Polícia Federal. No entanto, esse sistema não é adequado para o sistema de alertas DETER, que está baseado em imagens de menor resolução, mas com ampla faixa de varredura, e com câmeras que têm calibração espectral confiável. Os sensores dos satélites da Planet são instrumentos de prateleira, de muito menor qualidade que as câmeras dos satélites CBERS, e de difícil calibração entre as câmeras dos diversos satélites que compõem a constelação. Essas imagens são certamente de suficiente qualidade para interpretação visual, no monitoramento atividades humanas ilícitas, como garimpo ilegal, por exemplo, mas seu uso em processamento automatizado é muito difícil, exigindo várias calibrações cruzadas.
Concluindo, Senhor Ministro, reitero ser essencial para o país reforçar a atuação do INPE como avançada instituição de desenvolvimento científico e tecnológico, responsável pelo monitoramento por satélites de nossos biomas e pela execução das aplicações civis do Programa Espacial Brasileiro, atendendo demandas especiais dos diferentes órgãos do Governo, mas sempre respeitando a correção e a independência soberana do conhecimento científico.
Thelma Krugg
Obrigada, Ministro Barroso, permita-me cumprimentá-lo e por intermédio de Vossa Excelência, cumprimentar as demais autoridades, colegas e participantes dessa importante audiência pública.
Rogo a sua anuência para participar desta sessão pública trazendo primeiramente informações e alguns resultados do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima – IPCC, para depois tecer considerações de natureza mais geral enquanto pessoa que por 37 anos serviu ao governo, enquanto pesquisadora do INPE e com passagens no Ministério do Meio Ambiente, buscando separar claramente essas minhas duas contribuições.
O IPCC, estabelecido em 1988, não faz pesquisa e seu papel é avaliar, de forma completa, objetiva, aberta e transparente, as informações científicas, técnicas e sócio econômicas relevantes para o entendimento da base científica do risco da mudança do clima de natureza humana, seus potenciais impactos e opções para adaptação e mitigação.
Os resultados apresentados em seus relatórios são acompanhados de qualificadores baseados na evidência e na concordância entre as publicações científicas de todo o mundo. Em 2014, o IPCC publicou o quinto relatório de avaliação, totalizando mais de 5.000 páginas. Importante ressaltar que as minutas dos relatórios do IPCC são submetidas para revisão de especialistas de todo o mundo, além de seus 195 governos membros que têm, portanto, a oportunidade de comentar e sugerir publicações adicionais, tornando seus resultados ainda mais robustos.
Além disso, os resultados mais relevantes do relatório são apresentados em um Sumário para Formuladores de Políticas e aprovados por consenso, linha por linha, em sessão plenária de seus 195 governos membros.
Excelência, a ciência baseia-se em observações e evidências, e as observações do sistema climático incluem tanto as obtidas por medidas diretas quanto a partir de dados de inúmeros satélites e outras plataformas.
Cito alguns resultados do último relatório de avaliação do IPCC de 2014 que considero relevantes:
o aquecimento do sistema climático é inequívoco;
muitas mudanças observadas no sistema climático desde 1950 não têm precedentes em décadas ou milênios;
cada uma das últimas três décadas têm sido sucessivamente a mais quente na superfície da Terra do que qualquer outra década anterior desde 1850;
o aumento das concentrações atmosféricas de alguns gases de efeito estufa relevantes não tem precedentes em pelo menos os últimos 800,000 anos.
Finalmente, Excelência, e possivelmente mais relevante, a interferência humana com o sistema climático está ocorrendo e é considerada a causa dominante do aquecimento observado desde a metade do século XX.
A influência antrópica foi identificada nas mudanças da temperatura próximo à superfície da Terra, na atmosfera e nos oceanos, assim como mudanças na criosfera, no ciclo hidrológico e alguns extremos.
Esta evidência combinada conduz a ciência a afirmar que não há mais espaço para duvidar-se da existência da mudança do clima e da contribuição humana para o aumento do aquecimento global.
Mais recentemente, em 2018, por convite da Convenção do Clima, o IPCC produziu um relatório especial sobre Aquecimento Global de 1.5oC, onde estima-se que, até o presente, as atividades humanas causaram um aquecimento médio global de aproximadamente 1.0oC acima dos níveis pré-industriais.
Em algumas regiões, onde este aquecimento pode chegar a 3 vezes mais, como no Ártico, a perda de massa das geleiras e a expansão térmica dos oceanos resultam no aumento no nível médio global do mar.
A perda de massa dos mantos de gelo da Antártica triplicou no período de 2007 a 2016 relativo a 1997-2006, segundo o relatório especial do IPCC sobre criosfera e oceanos, de 2019.
Excelência, com a estimativa do aquecimento médio global de 1ºC, devido a atividades humanas, já foram detectados impactos significativos em muitas partes do mundo, como aumento na frequência e/ou intensidade de perturbações tais como secas, queimadas e surtos de pragas, tendo sido possível atribuir parte deste aumento à mudança do clima e não à variabilidade natural. Com a ampliação do conhecimento científico desde 2014, o próximo relatório de avaliação do IPCC, em 2022, apresentará evidências ainda maiores sobre detecção e atribuição de eventos climáticos extremos à mudança do clima.
A mudança do clima futura será função da redução substantiva, sustentada e tempestiva das emissões de gases de efeito estufa, em todos os setores da economia e se ambiciosa o suficiente, poderá evitar que os extremos climáticos se tornem mais frequentes, mais intensos e mais duradouros evitando ou reduzindo potenciais impactos significativos nos sistemas natural e humano. Toma-se nota do Acordo de Paris, de 2015, e o reconhecimento de que limitar o aumento da temperatura média global a bem menos que 2oC, buscando limitá-lo a 1.5oC acima dos níveis pré-industriais, reduziria os riscos e impactos da mudança do clima.
Atualmente, as estimativas das emissões globais das atuais ambições de mitigação nacionalmente declaradas, submetidas no Acordo de Paris são consistentes com trajetórias que resultam em um aquecimento global de aproximadamente 3oC até o final deste século, com o aquecimento continuando depois disso.
Daí, entende-se o esforço das Nações Unidas por mais ambição na agenda de mitigação, porque projeta-se que os riscos relacionados ao clima para a saúde, meios de subsistência, segurança alimentar, abastecimento de água, segurança humana e crescimento econômico aumentam com o aquecimento global de 1.5ºC e aumentem ainda mais com 2ºC.
Ao finalizar a primeira parte de minha apresentação, cito a frase do filósofo Hipócrates que diz que há verdadeiramente duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em crer que se sabe reside a ignorância.
Permita-me agora, ministro Barroso, focar unicamente no nosso país e buscar trazer elementos que visam contribuir para esta discussão. Excelência, fui cedida ao Ministério do Meio Ambiente em dois momentos importantes: quando da criação da Secretaria de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental, em 2006, e na Secretaria de Clima e Florestas, como Diretora no Departamento de Políticas para o Combate ao Desmatamento, em 2016.
Nesses dois tempos, nasceram os embriões da Política Nacional sobre Mudança do Clima e do Fundo Clima, que geraram posteriormente o Plano Nacional sobre Mudança do Clima de 2008 e a proposta de criação do Fundo Amazônia, inovadora sob o ponto de vista institucional e de governança, assegurando que doações internacionais e nacionais fossem feitas garantindo a nossa soberania e total independência na formulação das políticas públicas para a redução do desmatamento.
Estresso a importância que o Fundo teve no apoio ao IBAMA, em projeto que promoveu o fortalecimento de sua capacidade institucional e de fiscalização e os recursos alocados para o Cadastro Ambiental Rural, fundamental para avanços na regularização fundiária.
Sob a Secretaria de Mudança do Clima e Florestas, avanços significativos foram alcançados para avançar na agenda climática e em medidas para conter o desmatamento e agir preventivamente contra as queimadas.
Cito a 4ª fase do Plano de Ação de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm e o 3º Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado – PPCerrado, ambos com vigência de 2016 a 2020; o lançamento da Estratégia Nacional para REDD+, um instrumento econômico no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima para prover incentivos financeiros por resultados de redução de emissões florestais, preenchendo um dos requisitos sob a Convenção para tornar o país elegível ao instrumento; e o projeto de lei para a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que representa uma normatização específica para o enfrentamento do fogo e que tramita atualmente no Congresso Nacional.
Ministro Barroso, todas essas iniciativas foram construídas a partir de processos consultivos amplos e participação da sociedade civil, assegurando coerência com ações de outros ministérios e acordos internacionais, em sintonia com o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Itamaraty.
Esta pequena síntese demostra a importância que o país conferiu à temática climática e à política ambiental, que não foi obstáculo para o crescimento econômico do país. Excelência, muito foi feito e há muito mais a se fazer.
O Brasil não tem tempo a perder. Já neste ano, por exemplo, a taxa do desmatamento bruto na Amazônia Legal deveria ser menor que 4.000 km2, conforme previsto na Política Nacional sobre Mudança do Clima.
É altamente provável que a taxa do desmatamento bruto na Amazônia Legal neste ano atinja um nível não observado desde 2007/2008. Para as críticas de que os dados do INPE extrapolam os limites do bioma Amazônia e que, portanto, são superestimados, esclareço que a diferença média entre a taxa de desmatamento para a Amazônia Legal e o bioma Amazônia é menor do que 3%. Excelência, não faltam desculpas neste governo para justificar o injustificável.
Parte-se primeiro da negação. Em seguida, da desqualificação de dados oficiais, particularmente os do INPE, tanto do desmatamento anual quanto das queimadas, que sempre serviram como base para a construção de políticas públicas informadas. Infelizmente, este governo não tem se preocupado em buscar entender os dados que critica; não tem se preocupado em consultar os especialistas que, há anos, se debruçam para desenvolver sistemas que permitam gerar o melhor dado possível para o país, visando apoiar a melhor tomada de decisão.
Nos anos 90, o INPE desenvolveu o primeiro sistema operacional para detecção de queimadas que foi sendo aperfeiçoado com dados de mais satélites e dados meteorológicos e que hoje abrange todos os países da América do Sul, inclusive a Guiana Francesa, de maneira totalmente automatizada. E o que dizer do sistema de monitoramento do desmatamento do Instituto, já considerado “a inveja do mundo”.
Investiu-se muito na capacitação de pesquisadores e técnicos, para que tal resultado fosse alcançado. Todos, reforço, todos os dados do INPE são públicos e verificáveis, tanto em nível nacional quanto internacional, conferindo a eles a credibilidade que detém.
Excelência, permita-me dizer que desde 2004, quando a primeira fase do PPCDAm foi implementada, os Planos seguintes foram sendo aprimorados a partir de lições aprendidas, de sucesso e fracasso, do conhecimento, e das oportunidades, visando enfrentar as causas do desmatamento de forma abrangente, integrada e intensiva, sempre apoiado em ações articuladas em 3 eixos temáticos, o fundiário e de ordenamento territorial; o de monitoramento e controle; e o de fomento às atividades produtivas sustentáveis.
Na última fase incluiu-se ainda um eixo de instrumentos normativos e econômicos, com o objetivo de criar mecanismos que incentivem a economia de base florestal e que contribuam para o desenvolvimento de uma matriz produtiva, economicamente competitiva e com o menor impacto possível sobre a floresta.
Não é claro se o atual governo se beneficiou das 150 páginas do último Plano, elaborada após meses de consultas e análises, ou se o substituiu totalmente pelo Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa 2020-2023, de 19 páginas, apresentado pelo vice-presidente Mourão em maio deste ano. Como o próprio governo admite, começou um pouco tarde demais.
Ministro Barroso, é fundamental entender que dentre os eixos do PPCDAm mencionados, o que gera resultados mais rápidos é justamente o eixo de controle e monitoramento, ao qual se atribui grande parte do sucesso de redução do desmatamento desde 2004. Resultou do PPCDAm o sistema DETER do INPE, desenvolvido em conjunto com o IBAMA para, através de dados diários de satélites, identificar alertas de desmatamento, permitindo assim ações em campo mais eficientes e tempestivas. Não há escassez de dados. Há escassez de ações.
De nada adianta o governo investir em mais imagens, em mais satélites, se não consegue digerir nem o que tem hoje à mesa. Com o desmonte do IBAMA, com as restrições para ações efetivas dos órgãos ambientais em campo, com a proibição da queima dos equipamentos utilizados pelos desmatadores criminosos, com a revogação do decreto que não permitia a expansão da cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal, com o estímulo a atividades de mineração ilegal em terras indígenas…
Excelência, o que esperar? Não haverá plano, não haverá dado, não haverá discurso, não haverá promessa que nos leve a um final feliz. Temos que ser realistas.
Com essas considerações, senhor Ministro, encerro a minha participação, agradecendo Vossa Excelência pela oportunidade.
Joana Setzer
Litigância climática, Cortes Supremas e o princípio da separação dos poderes
Dra. Joana Setzer, London School of Economics and Political Science
Introdução
Excelentíssimo Ministro Luis Roberto BARROSO,
Demais Ministros e Ministras,
Autoridades e colegas,
Gostaria de parabenizar essa Corte pela iniciativa de promover esta audiência pública, importante manifestação do seu espírito democrático e participativo. Agradeço também pela oportunidade de participar de um momento tão relevante da história política ambiental e climática do Brasil – e do mundo.
É justamente sobre essa perspectiva global que pretendo fazer algumas ponderações.
Sou professora da London School of Economics, e coordeno a linha de pesquisa sobre litigância climática no Grantham Research Institute, um centro que é referência mundial em pesquisa interdisciplinar sobre mudanças climáticas. Publicamos, anualmente, um relatório sobre as principais ações climáticas no mundo – mais de 1.600 ações, identificadas em todos os continentes e em jurisdições regionais e internacionais.
Diante deste levantamento, um aspecto já merece destaque: esta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental não se trata de um processo qualquer.
Esta eh a primeira vez em que essa Corte tem diante de si uma ação que trata de um dos problemas mais sérios e urgentes que afeta a humanidade – as mudanças climáticas.
Em uma recente declaração, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Antonio Gutierres, fez claro este ponto: apesar dos impactos da pandemia, as mudanças climáticas constituem a emergência mais profunda que ameaça o planeta”.
No Grantham Institute, fazemos um acompanhamento sistemático não apenas de ações climáticas, mas também de leis e politicas climáticas nacionais. Nosso levantamento mostra que todos os países têm pelo menos uma lei ou política que lida com o tema das mudanças climáticas. São mais de 2000 delas. Leis e políticas não faltam. Mas a implementação de medidas para reduzir emissões e proteger populações ainda eh insuficiente, e os impactos das mudanças climáticas já se fazem notar. O baixo nível de ambição e as falhas na implementação de politicas têm consequências sérias para as futuras gerações e, de modo preocupante, para os grupos mais vulneráveis do presente.
É neste contexto que deve ser entendida a presente ação.
Dentro do conjunto que denonimamos acoes climáticas, destaca-se um grupo de ações que levam à apreciação do Judiciário um questionamento quanto à insuficiência de ações de governos no combate às mudanças climáticas. Dentro desse grupo, um número pequeno de casos já atingiu as cortes supremas.
Nesta breve intervenção, eu gostaria de focar em dois pontos:
– Todas as ações climáticas que até hoje chegaram às cortes supremas são ações propostas contra governos
– Algumas tem por foco questões regulatórias, outras tem por foco a proteção de direitos fundamentais.
– Todas essas ações:
Não ha no âmbito dessas acoes mais nenhuma controvérsia sobre se as mudanças climáticas estão ocorrendo, e qual a sua origem. Os governos nessas ações – e até mesmo as grandes empresas de petróleo e energia que figuram no polo passivo de ações de direito privado – invariavelmente aceitam as conclusões do IPCC, reconhecendo as causas antropogênicas das mudanças climáticas e a importância de se manter o objetivo de limitar o aquecimento a 2C, e preferivelmente 1.5C.
A discussão restringe-se a determinar como, quando e com base em qual fundamento legal os governos irão concretizar estes objetivos. Destaco aqui quatro dessas acoes:
– Em Massachusetts v EPA, caso emblemático e pioneiro de litigância climática, a Suprema Corte dos EUA entendeu serem insuficientes as razões expostas pela agência ambiental Americana para deixar de regular as emissões de GEE provenientes de veículos automotores.1
– na Irlanda, no caso trazido pelo grupo Amigos do Meio Ambiente Irlandês, a Suprema Corte entendeu que o plano nacional de mitigação era demasiado vago, e determinou ao governo que revisasse o plano.
– no caso Urgenda, a Suprema Corte holandesa impôs ao governo uma redução de emissões mais ambiciosa, baseando sua decisão na possibilidade de o Judiciário avaliar o atendimento a direitos fundamentais.
– Na Colômbia, no caso Futuras Gerações v Ministério do Meio Ambiente, a Suprema Corte reconheceu que a omissão do Estado no combate ao desmatamento da Amazônia também constitui uma ameaça a direitos fundamentais.
Cada uma dessas Cortes levou em consideração os precedentes das Cortes que lhe antecederam. Cada um desses casos despertou grande atenção internacional. Em todos esses casos as Cortes Supremas concluíram ser necessárias ações efetivas dos seus respectivos governos.
Nos próximos meses, as Supremas Cortes do Canadá, da Espanha, da Suíça e da Noruega também irão manifestar-se pela primeira vez em casos climáticos.2
A tendência eh clara: no Brasil, assim como ao redor do mundo, cidadãos, organizações e instituições competentes continuarão a trazer ações judiciais contra governos que não têm tratado das mudanças climáticas com a seriedade e urgência que o tema exige.
Qual o papel das Cortes nesses casos?
Nesta segunda parte da minha fala, eu gostaria de chamar a atenção de Vossas Excelencias para a questão da
Não há dúvida de que as decisões governamentais para lidar com as mudanças climáticas são complexas, e, por se darem no âmbito de políticas públicas, devem ser debatidas com cuidado pelo Judiciário.
É importante ressaltar, contudo, que em nenhum dos casos climáticos decididos por outras Cortes Superiores este princípio impediu julgamentos em face dos governos, que foram então obrigados a avançarem suas medidas de governança.
No paradigmático caso Urgenda, a Suprema Corte da Holanda analisou expressamente a questão da separação de poderes. Diante do caso concreto, entendeu que os tribunais podem – mais que isso: devem – proferir decisões declaratórias que certificam a ilicitude de uma omissão estatal. A Corte deve, portanto, determinar que o órgão público adote medidas no sentido de alcançar certo objetivo.
Também no presente caso não há afronta ao princípio da separação dos poderes. Aqui eu gostaria de destacar dois motivos que justificam a tutela requerida sob este ângulo.
Em primeiro lugar, porque já existe uma obrigação legal, um dever de agir, plenamente exigível por meio do Judiciário.
O Fundo Clima foi criado por um ato do Legislativo (a Política Nacional sobre a Mudança do Clima) com o objetivo de (i) assegurar recursos e (ii) financiar estudos e projetos que visem à mitigação e à adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
Assim, não estamos diante de uma lacuna ou ausência de instrumento legal, e sim diante de uma política inefetiva.
Constatada a ausência injustificada de repasse ou destinação de recursos ao financiamento de estudos e projetos, configura-se uma situação de ilegalidade e omissão constitucional.
A atuação do Judiciário, nesse sentido, constitui uma “resposta do Estado” proporcional à “falha do governo”, e eh destinada a restaurar a integridade do ordenamento jurídico.
Apontar a falha do governo não é o mesmo que decidir pelo governo. O presente processo, não pede a esse Tribunal nada além do que reconhecer a falha do governo e garantir que medidas estatais sejam tomadas de forma eficiente.
Como já destacado diversas vezes por esse Tribunal, o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública adote medidas que assegurem direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.
Vale aqui novamente mencionar um precedente internacional. A decisão da Suprema Corte da Irlanda concluiu que, no momento em que o parlamento optou por legislar sobre a política climática, a adjudicação sobre seus dispositivos passa a ser uma questão de direito, e não meramente de política. A Corte viu-se, portanto, ‘obrigada a se manifestar’, e determinou que o governo deveria rever um plano de mitigação que estava aquém do nível de especificidade necessário, conforme a própria legislação do país.
Em suma, deve o Judiciário decidir se o Executivo está agindo conforme a lei e, em especial, a Constituição Federal. Se a política adotada pelo governo estiver em desacordo com preceitos legais e constitucionais, o Judiciário não só pode como deve atuar para garantir a efetiva implementação da política climática.
O segundo motivo a justificar a atuação do Judiciário em casos como este resulta da incidência da força normativa dos direitos humanos
De acordo com o IPCC, os efeitos das mudanças climáticas afetam gravemente a saúde, o modo de vida, a alimentação, o acesso à água, a seguridade humana e o crescimento econômico.
Como afirmou a Alta-Comissária de Direitos Humanos da ONU Michelle Bachelet “o mundo nunca esteve diante de uma ameaça tão grande aos direitos humanos como esta imposta pelas mudanças climáticas”.
A quem cabe agir? A Corte Interamericana de Direitos Humanos já determinou que os Estados devem adotar todas as medidas apropriadas para proteger e preservar o direito à vida.
Diversas Cortes nacionais também já reconheceram que as mudanças climáticas constituem uma ameaça aos direitos humanos, e que os Estados devem agir para limitar os níveis de emissões de GEE e proteger suas populações. As decisões das Supremas Cortes da Holanda e da Colômbia reconhecem que a atuação das cortes é legítima, porque a omissão do governo apresenta um risco inaceitável a direitos fundamentais.
Neste sentido, a presente ação não trata apenas das obrigações do governo com base no art. 225 da Constituição. A ação também diz respeito a um dever de proteção de outros direitos humanos conexos.
No momento em que o governo deixa de implementar ou deixa de viabilizar a implementação de medidas aptas a reduzir o problema das mudanças climáticas, viola não “apenas” o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas também o direito à vida, à saúde, à alimentação, à cultura.
Caso não sejam adotadas medidas adequadas de mitigação e adaptação, os efeitos adversos das mudanças climáticas seguirão aumentando.
Dai a importância do Fundo Clima em financiar tais ações.
Importante notar, a efetividade da tutela não se esgota com a transferência dos recursos do governo para o fundo. O fundo apenas direciona, instrumentaliza a execução da Politica Nacional. Sua aplicação deve ser feita em consonância com os compromissos assumidos pelo Brasil em leis e politicas nacionais, em compromissos internacionais, bem como na sua Contribuição Nacionalmente Determinada (ou NDC) apresentada ao Acordo de Paris.
Assim sendo, a aplicação dos recursos do fundo deve resultar em uma efetiva redução das emissões de GEE, redução da vulnerabilidade, e ao mesmo tempo cumprir com os requisitos procedimentais de transparência, motivação e caráter democrático de governança.
Deixar de agir não é uma opção. A discussão aqui é urgente, e não pode mais ser postergada.
Concluindo.
EXCELÊNCIA, nessa minha intervenção procurei traçar um panorama das ações climáticas decididas por Cortes Supremas em outros países.
Em especial, como elas trataram da compatibilidade de suas decisões com o princípio da separação dos poderes.
Ressaltei, ainda, que a proteção do clima constitui um dever do Estado, sob pena de violação a direitos humanos fundamentais.
Eu termino relembrando as palavras da Juíza da Suprema Corte Americana, Ruth Bader Ginsburg:
“Um juiz é obrigado a decidir cada caso de forma justa, de acordo com os fatos relevantes e a lei aplicável… O que um juiz deve levar em conta não é a temperatura do dia, mas o clima de uma era”.
E acrescento. Agora, em todos os sentidos, o Judiciário deve julgar levando em conta não apenas o direito e a lei, mas o clima de uma era.
Obrigada.