O grande debate
O grande debate

O grande debate

Num artigo que contribuiu para tumultuar ainda mais o clima de apocalipse zumbi que o país vive, o general-vice-presidente escreveu no jornal O Estado de S.Paulo que o Brasil precisa debater mais. Segundo Hamilton Mourão, “opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação”. Sem isso, pondera nosso razoabilíssimo vice, “teremos descrédito e reação, deteriorando-se o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia”.

Tomada ao pé da letra, a afirmação é surreal. Mourão reclama de que a imprensa não dá espaço suficiente aos disparates obscurantistas, mentirosos, chulos e genocidas proferidos dia sim, dia também pela corja de sociopatas que ocupa o governo federal. O fato de fazê-lo precisamente num veículo de imprensa demonstra que a exigência é descabida. A imprensa tem como dever de ofício reportar o que vem do poder, e tem cumprido esse dever à risca. Não há um dia em que a primeira página dos jornais não esteja adornada por alguma atrocidade de Jair Bolsonaro ou de algum outro membro do alto escalão de sua récua. Jornalistas submetem-se ao risco cotidiano de receber patadas e perdigotos do presidente no chiqueirinho do Alvorada justamente para registrar as visões do governo sobre a Covid, o Universo, e tudo o mais.

Mas, claro, não foi isso o que Mourão quis dizer. O general faz uma ameaça clara aos meios de comunicação: ou vocês publicam nossos disparates defendendo a cloroquina e o tal “isolamento vertical” em pé de igualdade com as conclusões da comunidade científica ou “teremos reação”. Ou vocês falam bem do governo ou o “ambiente de tolerância” vai se deteriorar. Quando eu era criança e aprontava alguma e meu pai dizia que o ambiente de tolerância estava se deteriorando era porque a chinela ia cantar.

O recadinho do coração do general-vice-presidente traduz duas coisas importantes e opostas. Primeiro, deixa claríssimo aos inocentes que porventura ainda acreditam que os militares vão “moderar Bolsonaro” ou são “a única coisa que nos separa de um golpe” que este não é o caso. O próprio Mourão já havia dito numa live no mesmo Estadão – num dos raros momentos de sinceridade de algum membro deste governo – que “não existe ala militar”; é tudo um governo só. Os militares não estão apenas comprados para o projeto bolsonarista, eles são o projeto bolsonarista. Colegas meus de profissão, que se tornaram garotos de recados de suas fontes fardadas, se apressam a contar na imprensa que os militares “não querem uma aventura”. E não querem mesmo: aventuras, dizia Bilbo Baggins, “atrasam o nosso jantar”. A cada cargo que os militares ganham na administração federal fica mais claro que o golpe já aconteceu e ninguém precisou nem tirar a teia de aranha dos tanques para botá-los nas ruas. Sabe qual outro país virou uma autocracia depois que um presidente eleito loteou o governo entre militares? Ela mesma: a Venezuela.

A segunda coisa relevante na carta-ameaça de Mourão é a frustração enorme que ela deixa transparecer com uma instituição relictual do Brasil pré-2018: a tal imprensa livre.

O bolsonarismo foi extremamente hábil em transformar o campo virtual num território de relativização infinita. Nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp, o 6 é 9, a esfericidade da Terra é uma questão de opinião, grileiro e garimpeiro são “gente de bem” e as desonestidades epidemiológicas do doutor Osmar Terra são “uma visão diferente” – e se você se recusa a discuti-la você é um sectário antidemocrático. Nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp, a pulsão totalitária por borrar o referencial do mundo real e modificar até mesmo o passado já se completou de maneiras que nem Hannah Arendt nem George Orwell imaginariam tão eficazes.

Só que na imprensa não é assim que a banda toca. Sorry, Mourão. O método jornalístico decerto inclui ouvir sempre todos os lados de uma questão, mas não significa dar razão a todos eles, nem deixar que o leitor julgue sem parâmetro e tire suas conclusões. O jornalismo é o zagueiro, o filtro, o curador do real. Como diz um meme perfeito que circulou no início da pandemia do pós-verdade, há alguns anos, se uma pessoa diz que está chovendo e outra diz que não está, seu papel como jornalista não é registrar igualmente os dois lados: é botar a cabeça pra fora da janela e descobrir o que é verdade. O jornalismo profissional não é o Grande Debate da CNN Brasil, onde uma pessoa sensata discute em pé de igualdade com um imbecil pós-adolescente até que triunfe quem tiver a melhor “narrativa”.

A obsessão dos sociopatas que nos governam em dobrar a imprensa ao seu mundo ficcional revela o pânico que eles têm dessa instituição e o reconhecimento tácito dos limites da manipulação das redes sociais. Nestes tempos de pandemia, a associação entre a imprensa e a ciência produziu um coquetel insuportável ao bolsonarismo: as duas instituições da ordem iluminista encarregadas de buscar a verdade sobre o mundo estão trabalhando juntas, em simbiose. Para os autoritários, é como a luz do sol para um vampiro.

E esta é a melhor notícia. É claro que, como qualquer construção humana, imprensa e ciência têm vieses e problemas e estão sujeitas a manipulação. Mas têm também mecanismos de verificação e correção de erros que garantiram sua resiliência (e o progresso da humanidade) até aqui. Quando um aspirante a tirano como Hamilton Mourão ameaça a imprensa a abandonar esses mecanismos sob pena de “deteriorar o ambiente de tolerância”, ele presta sem querer a maior de todas as homenagens ao jornalismo profissional. E se mostra, como todo valentão de escola, um covarde inseguro. Sabe que alguma coisa ainda não quebrou na sociedade. Sabe que algo resiste e que esse algo vai se virar contra ele um dia. Passa da hora.

Autor

  • Claudio Angelo, 43 anos, é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de "A Espiral da Morte – como a humanidade alterou a máquina do clima" (Companhia das Letras, 2016). Foi editor de Ciência da Folha de S. Paulo.