OS BASTIDORES DO CENTRO ESPACIAL DE ALCÂNTARA
OS BASTIDORES DO CENTRO ESPACIAL DE ALCÂNTARA

OS BASTIDORES DO CENTRO ESPACIAL DE ALCÂNTARA

Velhos camaradas da FAB buscam auferir benefícios pessoais das atividades espaciais brasileiras, cujo espólio ajudaram a criar

Em abril de 2021, dois anos após a assinatura do Acordo de Salvaguardas Brasil – EUA, as mais altas autoridades da República compareceram à Base Aérea de Brasília para assistir ao anúncio das quatro empresas selecionadas no processo licitatório que visava a operacionalização do Centro Espacial de Alcântara – CEA. A importância conferida ao evento foi única, dele tendo participado o Exmo. Sr. Presidente da República, o Ministro da Defesa, os Comandantes do Exército e da Aeronáutica, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI, o Presidente da Agência Espacial Brasileira – AEB e diversas outras autoridades [1].

De acordo com a Força Aérea Brasileira – FAB, a cerimônia tinha por objetivo [2]: “apresentar para a sociedade o resultado do Chamamento Público lançado em 2020 para identificar e selecionar as empresas, nacionais e internacionais, com interesse em realizar operações de lançamentos de veículos espaciais não militares, orbitais e suborbitais, a partir do Centro Espacial de Alcântara.”

Dentre as empresas selecionadas, três eram norte-americanas e uma canadense:

  • Hyperion Rocket Systems (EUA), para operação do sistema de plataforma de lançamento outrora destinado ao Veículo Lançador de Satélites – VLS e hoje destinado ao Veículo Lançador de Microssatélites – VLM.
  • Orion Applied Science and Technology (EUA), para operar o lançador de veículos suborbitais já existente no Centro de Lançamento de Alcântara – CLA.
  • C6 Launch (Canadá), para lançar seu pequeno lançador de satélites, ainda sem nome, na região onde hoje existe uma infraestrutura denominada perfilador de vento.
  • Virgin Orbit (EUA), para utilizar a infraestrutura aeroportuária do CLA para lançar o seu foguete LauncherOne.

As informações disponíveis sobre as empresas Hyperion Rocket Systems, Orion Apllied Science and Technology e C6 Launch são limitadas, mas pretendem elas desenvolver veículos suborbitais e veículos lançadores de satélites de porte similar ao Veículo Lançador de Microssatélites – VLM, ora em desenvolvimento pelo Brasil. Essas empresas encontram-se em estágio de desenvolvimento tecnológico inferior àquele hoje existente no Brasil, não sendo surpresa que a Hyperion Rocket Systems já tenha desistido da empreitada [7]. A empresa norte-americana Virgin Orbit é a única que possui um foguete operacional. Trata-se do LauncherOne, um pequeno foguete lançado a partir da asa de um Boeing 747. Esses lançamentos podem ocorrer a partir de qualquer aeródromo qualificado. A Virgin Orbit afirma que, exceção feita à pista de pouso e decolagem, os demais equipamentos e infraestrutura necessários ao lançamento do LauncherOne são transportáveis para os sete centros de lançamento, além do CEA, com os quais a empresa assinou acordos. Até aqui, contudo, os cinco lançamentos do LauncherOne ocorreram nos EUA.

Pouco se sabe sobre a evolução das tratativas entre o Brasil e as empresas estrangerias supracitadas, mas é razoável supor que, finda a festa na Base Aérea de Brasília, tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes. O que se tem são notícias de novas iniciativas envolvendo a FAB, a AEB e novos parceiros externos. Notícia publicada no site do MCTI informa que a startup sul-coreana Innospace assinou acordo com o Brasil para a realização do primeiro voo de seu foguete suborbital experimental HANBIT-TLV, em 2022 [3]. Foi acordado que o HANBIT-TLV levará ao espaço o Sistema de Navegação Inercial – SISNAV, desenvolvido pelo Instituto de Aeronáutica e Espaço – IAE ao longo de décadas. Causa estupor imaginar que a FAB entregará o SISNAV a uma empresa estrangeira. O SISNAV constitui um dos itens mais sensíveis de um veículo espacial, objeto de cobiça, pelos que não detêm a tecnologia, e de embargo, por parte dos que a dominam. E o quadro se torna ainda mais grave quando o próprio IAE anunciou recentemente o plano de testar o SISNAV no primeiro voo do VS-50, previsto para agosto de 2023 [4]. O Brasil já investiu mais de cem milhões para desenvolver o motor S-50 e, agora, aparece essa ideia estapafúrdia de testar o SISNAV em um foguete sul-coreano suborbital que jamais voou? Quais interesses estratégicos FAB e AEB buscam atender?

Repetindo um velho e surrado enredo, essas notícias agourentas vêm sempre acompanhadas de uma sofisticada pitada de ineditismo que engana leigos de boa fé e favorece oportunistas de ocasião. Desta feita, coube ao presidente da AEB, um coronel da reserva da FAB, colocar uma cereja murcha nesse bolo solado ao afirmar [3] “Nesse caso, temos a situação exemplar em que serão testados tanto um veículo como um sistema inercial, ambos em desenvolvimento. Temos certeza que essa iniciativa do DCTA e da Innospace inaugurará um novo capítulo em nossa história de acesso ao espaço.” De fato, a FAB e a AEB inaugurarão um capítulo inédito na história dos programas espaciais mundiais, no qual o Brasil abre mão do desenvolvimento autóctone de atividades estratégicas em prol de nações estrangeiras.

Em maio deste ano, a empresa norte-americana Vaya Space anunciou em seu site que o seu vice-presidente de operações na América Latina se reuniu, em São José dos Campos, SP, com as maiores autoridades militares do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial – DCTA, quais sejam: o Diretor-Geral, tenente-brigadeiro Medeiros, o vice-Diretor, Major-Brigadeiro Belintani, e o diretor do Subdepartamento Técnico, Brigadeiro Luciano [5]. O objetivo da reunião foi avaliar o potencial de cooperação tecnológica entre o DCTA e a Vaya Space. O site da Vaya Space, também informa que três dias antes de comparecer à reunião com a alta direção do DCTA, o representante da empresa norte-americana no Brasil se reuniu em Brasília com o Tenente-Brigadeiro do Ar Heraldo Luiz Rodrigues, comandante do Comando de Operações Aeroespaciais – COMAE e o seu imediato, Major-Brigadeiro do Ar Alcides Teixeira Barbacovi [6]. A Vaya Space é uma das centenas de pequenas empresas que pretendem se estabelecer no mercado de lançamento de satélites de pequeno porte, mas se enquadra no mesmo nível da Hyperion Rocket Systems, Orion Applied Science and Technology e C6 Launch, ou seja, possui um nível de evolução tecnológica muito inferior àquele existente no Brasil. Portanto, os encontros de bastidores patrocinados pela Vaya Space podem ser caracterizados como um reencontro de velhos camaradas da FAB, uma vez que o representante da Vaya Space é o coronel da reserva Darcton Damião, que atuou como interventor no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, quando da demissão do Dr. Ricardo Galvão em 2019. Não é diferente do que ocorre com a empresa sul-coreana Innospace, cujo diretor de negócios é o Major da reserva Élcio Jerônimo de Oliveira. Tampouco difere daquela envolvendo a empresa canadense C6 Launch, que tem como seu representante no Brasil o Major Brigadeiro do Ar da reserva, Paulo Eduardo Vasconcellos, que, até recentemente, era Diretor de Inteligência Estratégica e Novos Negócios da AEB. O mesmo ocorrendo com o representante brasileiro da empresa Hyperion Rocket Systems, que, à época da solenidade na Base Aérea de Brasília, era o tenente-brigadeiro do Ar da reserva, Alvani Adão da Silva, ex-Diretor do DCTA. Pretendem estes senhores compartilhar conhecimentos sensíveis adquiridos durante suas carreiras militares na FAB em prol de empresas estrangeiras?

Em matéria publicada em junho pela revista Isto é Dinheiro, é informado que a Innospace foi escolhida em substituição à Hyperion Rocket Systems. Não será surpresa se a Vaya Space ingressar nesse processo por conta da desistência da Orion Applied Science and Technology, ou da C6 Launch. E aqui também surgem novos questionamentos. Será que o Chamamento Público de 2020, que levou à escolha das quatro empresas estrangeiras em 2021, permite esse tipo de substituição? Por que a empresa sul-coreana, Innospace, e a norte-americana, Vaya Space, não participaram da licitação inicial?

Diversos fatores saltam aos olhos quando se observa as movimentações ocorridas no Programa Espacial Brasileiro a partir de 2019. Em vez de trabalharem para que empresas estrangeiras explorem os recursos nacionais, representados pela posição geográfica e infraestrutura do Centro de Lançamento de Alcântara – CLA, não deveriam essas autoridades militares, trabalhar em prol do desenvolvimento aeroespacial genuinamente nacional? Enquanto isso, INPE e IAE foram abandonados à própria sorte encontrando-se em acelerado processo de sucateamento. Para tanto, contam com a conivência de seus diretores que, por dever legal, deveriam por elas zelar. Do lado do IAE, segue-se a doutrina militar segundo a qual um manda e o outro obedece. No lado civil, representado pelo INPE, a doutrina é mais evoluída. Seu diretor obedece, antes de ser mandado.

Os Estados que possuem programas espaciais de verdade, o fazem por razões estratégicas. Nenhum centro de lançamento no mundo é superavitário. Por isso, é descabida a intenção da FAB de tornar a operação do CEA uma atividade lucrativa para o Estado brasileiro. Não é este o papel da FAB. É compreensível a frustração de brasileiros dignos com a falta de resultados palpáveis oferecidos pelo Programa Espacial Brasileiro neste século, notadamente na vertente de veículos espaciais. Mas a opção não é a de sepultá-lo, sob a vã e ingênua promessa de que, com essas novas iniciativas, o Brasil ingressará no mundo espacial moderno, conhecido como NewSpace. Nada há de moderno nessas iniciativas nas quais velhos camaradas da FAB buscam auferir benefícios pessoais das atividades espaciais brasileiras, cujo espólio ajudaram a criar. Sem esquecer do péssimo exemplo que oferecem aos jovens oficiais da ativa e à sociedade civil. Em vez de permitir o sucateamento de suas históricas instituições, a FAB deveria avaliar o que deu errado nas últimas décadas e implementar mudanças que visem aos interesses verdadeiramente nacionais.

A cada dia, vai sendo comprovado que nada havia para ser celebrado na pomposa cerimônia de 28 de abril de 2021, na qual o ministro-astronauta, tenente-coronel da reserva da FAB, mencionou a participação brasileira no Programa Artemis (NASA), que pretende colonizar a Lua [1]. Não deixa de ser surpreendente que, com as atividades espaciais brasileiras em frangalhos, existam aqueles que vivem com a cabeça no mundo da Lua. Inebriado pelo clima reinante, o ministro-astronauta afirmou, sem qualquer conhecimento de causa, que depois de 30 anos o Programa Espacial Brasileiro decolava. Mas, como ele próprio desconhecia o destino desse voo cego, optou por saltar de paraquedas do MCTI em março último, deixando em seu rastro um legado de desconstrução das atividades espaciais brasileiras. Até aqui, a única coisa que esses autointitulados patriotas mandaram ao espaço foi o slogan “Brasil acima de tudo.”

  1. https://www.youtube.com/watch?v=Oq00RJjNv9s
  1. https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/37237/ESPACIAL%20-%20FAB%20divulga%20empresas%20selecionadas%20para%20opera%C3%A7%C3%A3o%20no%20Centro%20Espacial%20de%20Alc%C3%A2ntara
  1. https://www.gov.br/aeb/pt-br/assuntos/noticias/innospace-assina-acordo-tecnologico-com-o-departamento-de-ciencia-e-tecnologia-aeroespacial-dcta-fab-para-ensaios-de-voo
  1. https://www.youtube.com/watch?v=LWluvYGHp5U
  1. https://www.vayaspace.com/post/vaya-space-meets-with-department-of-aerospace-science-technology-brazil
  1. https://www.vayaspace.com/post/darcton-dami%C3%A3o-attends-comae
  1. https://www.istoedinheiro.com.br/innospace-da-coreia-do/