Qual o preço da lealdade?
Qual o preço da lealdade?

Qual o preço da lealdade?

O Brasil deverá ultrapassar hoje a desgraçada marca de 300 mil mortos pela Covid-19 e corre célere para tentar bater este funéreo recorde, com mais de 3000 mortos a cada 24h. O Brasil de Bolsonaro busca superar os EUA de Trump, quando ocorreram quase 500 mil óbitos.

A conceituada revista The Lancet publicou, em fevereiro passado, estudo mostrando que Trump reforçou as desigualdades históricas e deixou um “legado corrosivo” em temas como cobertura universal de saúde, negação da ciência e racismo. Segundo o relatório, as políticas da era Trump serviram para enriquecer os mais ricos e fragilizar os mais pobres.

Os pesquisadores avaliam que aproximadamente 40% das mortes por Covid-19 no governo Trump poderiam ter sido evitadas.

O governo Bolsonaro tem adotado práticas que beiram muito as insanidades praticadas por Trump no início da pandemia. Ocorre que o negacionismo tacanho do presidente Jair Bolsonaro não é uma loucura solitária.

O Brasil hoje é considerado, no mundo inteiro, como cemitério de Covid-19. Um pária global. E se esta é a imagem do Brasil no exterior, caberia ao Itamaraty, primeiro, estabelecer relações amistosas com países que poderiam nos fornecer as vacinas; segundo, reconhecer o desastre da gestão brasileira da crise sanitária e buscar reconstruir as pontes bombardeadas pelo ministro Ernesto Araújo.

Mas Araújo tem usado de seu foro privilegiado para, através das suas mídias sociais, afirmar que não é o negacionismo do governo no país dos 300 mil mortos que está na raiz da imagem negativa do Brasil no exterior. A culpa seria dos adversários políticos, aqui e lá fora. O mundo inteiro faz parte de um complô. Mas esperar o quê de alguém classificado por Gilberto Câmara, no Twitter, de mentiroso e insano?

Somos informados que o embaixador brasileiro na Espanha, Pompeu Andeucci Neto, em carta de quatro páginas enviadas ao jornal El País, diz que os “êxitos” do presidente Bolsonaro e a sua campanha contra a Covid-19 são reconhecidos pela população, que a pobreza cai e que a democracia é sólida no Brasil. Nos últimos meses, outros meios de comunicação no exterior já receberam cartas similares, entre eles o jornal Le Monde. No caso do El País, a queixa do diplomata se referia a um editorial publicado, pelos espanhóis, no dia 11 de março, e sob o título “El impacto de Lula“. De acordo com o embaixador, o texto é “desconectado da realidade dos fatos no Brasil”.

Notem a hierarquia dos que repetem o discurso insano: presidente, ministro, embaixador. Que Bolsonaro aja irresponsavelmente, nada de novo; que seu ministro o defenda, também com mentiras, compreensível, afinal, foi escolhido a dedo para o cargo, não por méritos de sua carreira, mas pela sua sabujice canina. Porém, quando um servidor público, no caso, um diplomata de carreira, repete os devaneios de seus superiores, este fato merece atenção. O Presidente se irá, o Ministro esquecido, mas o diplomata continuará como servidor público, cujo principal compromisso é o de servir ao Estado, não a um Napoleão de plantão. Estaria o referido diplomata ciente dos riscos que corre, profissionalmente, ao servir a um governante irresponsável, que com as suas atitudes delirantes poderá vir a ser responsabilizado pela tragédia que o Brasil enfrenta?

Recentemente o The Intercept revelou o drama sofrido por Lucas Ferrante. Doutorando em Biologia no INPA/MCTI, Lucas se tornou mundialmente conhecido por revelar ao mundo o desmonte das políticas ambientais do governo Bolsonaro. Ele publicou estudos que examinavam o tema nas maiores revistas científicas do mundo, como Science e Nature. Lucas moveu ações barrando projetos que destruiriam reservas indígenas e a grande parte da Amazônia. O grupo do qual Lucas faz parte também foi o primeiro a prever o descontrole da Covid-19 em Manaus, epicentro da nova e mais virulenta cepa do coronavírus que se espalhou pelo mundo. A sua exposição pública, porém, o tornou alvo de uma campanha de difamação que extrapolou as redes, tendo ele relatado em boletim policial que foi vítima de tentativa de sequestro e agressão. O que se esperava da direção do INPA diante da violência sofrida por um aluno abrigado em seu manto? Proteção e solidariedade. No entanto, aqueles que lhe deveriam dar proteção viraram-lhe as costas e ainda o advertiram para não continuar com a sua escalada de denúncias contra as ações e omissões do governo Bolsonaro. Pasmem, mais um caso em que uma servidora pública, a diretora do INPA, que deveria servir à sociedade, serve a um esbirro de presidente, comportando-se de maneira vergonhosa através de notas institucionais, negando que Lucas faça parte do INPA.

O INPE passou por uma fase tenebrosa onde um legítimo diretor foi defenestrado por se posicionar com coragem diante das calúnias e mentiras proferidas pelo Presidente da República. Voltamos à normalidade, mas a vigilância deve ser permanente, nenhuma forma de arbitrariedade, censura ou intimidação deverá ser permitida. Dirigentes de nossas instituições públicas, constroem um legado ou se omitem, mas passam. Nossas instituições permanecerão, tão fortes, modernas e protagonistas quanto for a nossa capacidade de produzir ciência com qualidade e independência.

Em novembro de 1945, representantes das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial se reuniram na cidade de Nuremberg, na Alemanha, para julgar 24 homens considerados criminosos de guerra, nazistas. O processo durou praticamente um ano e terminou com a condenação à morte de 12 dos acusados, 3 à prisão perpétua, 3 a penas que variavam de 10 a 30 anos de prisão, enquanto outros 3 foram absolvidos. Muitos criminosos de guerra foram esquecidos ou tiveram seus crimes amenizados, o que explica o número relativamente pequeno de acusados sobre os quais houve unanimidade em levá-los a julgamento.

No Brasil, o jornalista David Nasser, nas décadas de 40 e 50, o principal nome de O Cruzeiro, a revista líder dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, se notabilizou pela publicação da série de denúncias contra Filinto Muller, sob o título de Falta Alguém em Nuremberg, depois transformado em livro.

Não é difícil supor que, num futuro próximo, Bolsonaro e seus acólitos sejam submetidos a um “nuremberg” para pagarem por seus crimes. Quantos de seus seguidores, defensores e incensadores serão também julgados? E destes, quantos se safarão?