Termoelétrica é a nova cloroquina para salvar o sistema elétrico
Termoelétrica é a nova cloroquina para salvar o sistema elétrico

Termoelétrica é a nova cloroquina para salvar o sistema elétrico

No ano de 2020 fomos acometidos por muitos males. Em nível mundial, a pandemia da Covid-19 foi, e infelizmente continua sendo, o fato mais marcante. Dentro de nossas fronteiras, quantas mazelas mais vivenciamos, como se não bastasse o vírus. Uma profecia, que se espalhou com a mesma eficiência do pequeno organismo, foi dita pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial de 22/04/2020, quando afirmou que era hora de passar a boiada sobre as leis ambientais: modificá-las, esvaziá-las, eliminá-las. A ideia foi levada muito a sério por todo o governo federal e seguiu seu caminho rumo aos estados e municípios, sob as mais diversas formas. Em São José dos Campos, assumiu a forma de termoelétricas movidas a gás natural.

No último dia 15 de junho, o prefeito enviou à Câmara Municipal um projeto para alteração do artigo 240 da Lei Orgânica do Município. Esse artigo proíbe a instalação de termoelétricas na cidade e foi uma vitória da saúde sobre a morte lenta, pois foi aprovado, décadas atrás, diante da preocupação com a poluição gerada por termoelétricas movidas a gás natural, óleo e carvão. Felício Ramuth quer liberar o município para receber esse tipo de empreendimento, mas seus argumentos, assim como aqueles registrados na justificativa do projeto, desconsideram ao menos quatro aspectos fundamentais: danos à saúde, malefícios ao meio ambiente, inviabilidade econômica e ausência de democracia.

O tema da saúde da população está ausente da proposta. A contaminação do ar e o aumento da ocorrência de doenças respiratórias foram totalmente desconsiderados. Depois de provocado e criticado por especialistas, o poder municipal se defendeu utilizando medições da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) que atestam níveis de conformidade para o ar do município. No entanto, segundo o professor do ITA, Wilson Cabral, os limites da CETESB têm parâmetros baixos, pois aceitam contaminação 20% superior em relação ao parâmetro estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A instalação de termoelétricas não vai contribuir para melhorar esses parâmetros e nos distanciará, ainda mais, das melhores práticas internacionais. E ainda, mesmo que o ar da cidade fosse tão limpo quanto supõem alguns, qual mente brilhante poderia considerar uma boa ideia sujá-lo?

Todos temos assistido e vivenciado eventos climáticos cada vez mais intensos e trágicos: os incêndios, as enchentes, as secas, o calor ou frio intensos são sintomas da mudança climática. É urgente diminuir as fontes de emissão de gases de efeito estufa, e a liberação do território para instalação dessas fontes vai na contramão dessa necessidade, como alerta a pesquisadora do INPE, Luciana Gatti.

O gás natural é um combustível fóssil, poluente e não renovável; para a geração de energia, justifica-se apenas como substituto do carvão ou do óleo, que são ainda mais sujos. De acordo com o Balanço Energético Nacional de 2020, a capacidade instalada de geração de energia elétrica tem participação de 1,9% de carvão e 4,5% de derivados do petróleo. Apenas para essa parcela seria justificável a utilização de gás natural como combustível de transição. Para a Europa, que tem mais de 1/3 de sua matriz no carvão, é viável considerar o gás natural. Para o caso brasileiro, com apenas 6,4% da matriz com substituição vantajosa, não há justificativa técnica, ou econômica, para não migrar diretamente para fontes renováveis.

A justificativa, no projeto de Felício Ramuth, afirma que as fontes alternativas de energia ainda são caras, sem demonstrar valores ou citar fontes de informação. Os números discordam da afirmação da prefeitura. As fontes não renováveis (carvão, óleo e gás natural) são mais caras que as renováveis (biomassa, hidroelétrica, eólica e solar). Segundo levantamento do Instituto Escolhas, o preço do Megawatt hora (MWh) da energia por gás natural atinge até R$ 412; por hidroelétrica tem a média de R$ 286; por vento até R$ 244 e por sol até R$ 328.

A conta de luz aumentou, e muito, nos últimos meses devido à entrada em operação das usinas termoelétricas com sua energia cara. A falta de chuva, a má gestão do sistema e a falta de planejamento baixaram os níveis dos reservatórios de água e levaram ao acionamento das termoelétricas. A prefeitura se aproveita desses erros para continuar insistindo neles, afinal acionar termoelétricas não resolve nenhum dos problemas na raiz e, cada vez que precisamos fazer isso, poluímos o planeta e oneramos especialmente as famílias mais pobres. A conta de energia subiu acima da inflação nos últimos meses e tem abocanhado cerca de 5% do orçamento familiar, segundo o INPC-IBGE. Portanto, falar em aumentar a disponibilidade é aumentar a carestia de vida e os custos de produção.

O espírito democrático não preside a forma como a questão sem sido encaminhada. Não houve estudos específicos para a nossa região, consulta aos órgãos como o Conselho Municipal de Meio Ambiente, e muito menos debate e consulta aos supostos mais interessados, segundo o prefeito: toda a população do município.

Poucas horas depois de finalizar esse texto, a Câmara de Vereadores de São José dos Campos apreciou o projeto em primeiro turno, no dia 12 de agosto. Foi uma atitude lamentável, considerando no mínimo duas questões: 1ª – o tema não estava previsto na pauta, entrou de última hora com uma urgência injustificada; 2ª – uma comissão de especialistas foi recebida pelos vereadores da Câmara Municipal de São José dos Campos dias antes e houve o compromisso de continuidade da conversa. A votação atropelou a comunidade científica, ambientalistas e outros movimentos envolvidos, pois havia um compromisso de continuidade do diálogo com nova reunião já agendada. E o principal: qual é a urgência para essa matéria?

A população tem pouco ou nada a ganhar e muito a perder, afinal receber uma, ou várias termoelétricas, não significa que essa energia será destinada localmente, pois o sistema nacional é interligado e, portanto, não oferece nenhuma vantagem para o local no qual está instalada a fonte geradora.

Termoelétrica não é uma vaquinha pronta para ser ordenhada por quem estiver por perto. Já a poluição sim, passará a ser cidadã joseense e a parte do território onde se instalarem esses empreendimentos será mais uma zona de sacrifício em nome do desenvolvimento.

A visão de futuro propagandeada para defender o projeto é aterrorizante, é de morte, e para poucos. O prefeito fala que a termoelétrica é necessária para, por exemplo, eletrificar a frota de transporte individual e coletivo. O menor preço de um carro elétrico hoje é R$ 160 mil. Vê-se que o benefício é para poucos e que critérios como a redução da desigualdade social passam ao largo das preocupações. Temos que 8% da população mais rica consome mais de 50% da energia gerada, de acordo com o professor da Unicamp, Luiz Marques, e, em meio a tanto desemprego na nossa região, vale ressaltar que a operação de uma termoelétrica gera pouquíssimos postos de trabalho.

Somos seres que construímos nossa vida nesse planeta convertendo matéria em energia, mas estamos falando, efetivamente, de energia para quem? E às custas de quem?

Para a apreciação de um projeto como esse, são requisitos mínimos estudos que comprovem a necessidade, os impactos e os riscos envolvidos, como tem solicitado o Defensor Público do Estado de São Paulo, Dr. Jairo Salvador. A prefeitura não apresentou esse material, os vereadores não estão de posse dessas informações e muito menos a população.

Por outro lado, muitas iniciativas de esclarecimento têm sido tomadas por sindicatos, movimentos sociais, comunidade científica e partidos políticos. Espera-se que os vereadores não votem sem saber o que estão fazendo e que a população tenha a oportunidade, ou melhor, o direito de ser informada e consultada sobre o tema.

O momento exige honestidade, coragem e responsabilidade, como muito bem alerta a carta pública da Comissão Socioambiental da Diocese de São José dos Campos. Esses atributos são especialmente importantes nos gestores públicos, e esperamos ainda os ver, por meio de um debate no campo da ciência, da ética e da saúde, para a instalação, ou não, desse e de qualquer outro empreendimento de grande impacto no nosso município.

Assista os quatro programas da jornada online sobre a instalação das termelétricas:

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