O Brasil, de joelhos, mendiga, junto a seus parceiros dos Brics, Rússia, Índia e China, ajuda para amenizar a catástrofe da Covid-19. E de quem é a culpa? Enquanto essa ajuda não vem, morrem quase 10 mil brasileiros a cada semana.
Nossa história começa com a guerra das Malvinas, quando Inglaterra e Estados Unidos bloquearam a exportação de fármacos e remédios para a Argentina.
Preocupado com a perspectiva de que pudesse acontecer algo semelhante com o Brasil, o governo Figueiredo aprovou um amplo projeto do desenvolvimento da capacidade tecnológica nacional no setor de fármacos.
O governo emprestaria recursos financeiros às empresas do setor, que se associariam a instituições de pesquisas, remunerando-as com os empréstimos. Entrando em produção os produtos desenvolvidos, o governo federal seria reembolsado.
Mas eis que, já durante o governo Fernando Collor, as multinacionais no setor farmacêutico, coadjuvadas pelo governo americano e outros, iniciaram pressões para que fosse adotada uma legislação sobre propriedade intelectual que assegurasse mercados e monopólio tecnológico para seus países. Collor enviou aos EUA dois prestigiosos ministros, José Goldemberg, da Ciência e Tecnologia, e Ozires Silva, da Infraestrutura, para serem instruídos pelo Departamento de Comércio e prepararem o documento adequado aos interesses norte-americanos.
Collor, porém, foi defenestrado, e entrou o nacionalista Itamar Fraco. A pressão se arrefeceu.
Todavia, assumiu em seguida o “príncipe dos sociólogos”, Fernando Henrique Cardoso, que, ansioso em agradar o patrão americano, promoveu a aprovação pelo Congresso Nacional de legislação sobre propriedade intelectual lesiva aos interesses nacionais.
China e Rússia se negaram a assinar o acordo de propriedade intelectual de interesse dos países hospedeiros das multinacionais do setor farmacêutico. A Índia aceitou, porém manteve a consentida proposta de quarentena por dez anos, o que lhe permitiu consolidar a sua indústria nascente de fármacos. O Brasil, generoso, servil, abdicou da quarentena. Bill Clinton ficou feliz.
Em seguida, 1.050 estações de produção de química fina (à época, na maior parte, fármacos) foram extintas e 300 projetos, já aprovados, interrompidos (o levantamento é do próprio governo FHC).
Divulgou-se então um aumento de quase 1% do PIB na aplicação às pesquisas. Mentira descarada. Denunciei, nesta Folha, que atribuíra-se à Ciência e Tecnologia um estímulo (doação) às montadoras multinacionais de veículos, quase US$ 2 bilhões. Enquanto isso, o Sistema Nacional de Pesquisas agonizava, à míngua de recursos.
Pois bem, a administração Jair Bolsonaro se mostra tão cega quanto aquela de FHC. Dos recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a principal fonte nacional de apoio para pesquisas em 2020, gastou-se menos que 10% e ameaça-se manter uma legislação que permite o contingenciamento “ad infinitum”.
Se Fernando Henrique Cardoso contribuiu decisivamente para o atraso tecnológico atual do Brasil no setor de medicamentos, Bolsonaro estará acabando com o futuro do Brasil, definitivamente, com o contingenciamento do FNDCT. Fármacos são mais importantes para a segurança nacional do que pólvora.
Publicado no Jornal Folha de SP em 09/02/2021
Sobre Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é considerado uma das pessoas mais importantes no Brasil, quando se trata de ciência, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento. É autor de 80 trabalhos em revistas especializadas. Foi editor da Solid State Communications, editada em Oxford (Inglaterra), de 1974 a 1988, e revisor de cerca de 20 revistas internacionais.
Publicou mais que dois mil artigos em jornais e escreveu vários livros sobre temas como a atuação das multinacionais, o programa nuclear brasileiro, ensino superior e transferência de tecnologia.
Obteve cerca de 3.000 citações em revistas científicas, segundo o Science Citation Index.
Graduado em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1958, obteve seu doutorado em Física pela Universidade de Paris (Sorbonne) em 1962. Trabalhou como pesquisador da Bell Laboratories, de 1962 até 1970.
Lecionou no ITA, na Unicamp (1970-1987) e na Universidade de Paris (como professeur d’échange). Dirigiu o Instituto de Física e criou o Departamento de Física do Estado Sólido da Universidade de Campinas. Foi o primeiro no país a utilizar o laser para estudar propriedades dos materiais. Ainda na Unicamp, implantou o Departamento de Música e em seguida o Instituto de Artes, além de ter assumido a Coordenadoria Geral das Faculdades (1975-1980).
Foi membro do Grupo de Trabalho de Energia da União Internacional de Física Pura e Aplicada – IUPAP. Foi membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Conselhão).
Atualmente é Presidente de Honra do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais), entidade responsável pela gestão dos Laboratórios Nacionais de Luz Síncrotron (LNLS), de Biociências (LNBio), de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) e de Nanotecnologia (LNNano). Foi membro de vários conselhos de entidades científicas, tais como SBPC e FAPESP. É consultor de várias agências estatais, como a FINEP, e de organizações privadas. Voltou a ser Presidente do Conselho de Administração do CNPEM em 2015.
Criou e dirigiu por 20 anos a CODETEC, empresa que criou a primeira incubadora tecnológica do Brasil (1975-96) e desenvolveu mais de uma centena de projetos para diferentes organizações públicas e privadas.
Foi idealizador do projeto e liderou o debate que culminou na criação da Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). A companhia foi instalada no primeiro governo de José Roberto Magalhães Teixeira, convencido por Cerqueira Leite sobre a decisão estratégica que seria a instalação de um parque tecnológico no município.
Títulos e honrarias:
• Foi agraciado com a comenda da Ordem Nacional do Mérito da França
• Cátedra da Universidade de Montreal, Canadá
• Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico
• Pesquisador Emérito do CNPq.
• Título Cidadão Campineiro
• Recebeu o Building Scientific Institutions Prize 2012, conferido pelo Escritório Regional para a América Latina e Caribe da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS, da sigla em inglês) a pesquisadores com participação ativa na constituição de instituições de pesquisa.
• Prêmio TOP Etanol. Contribuição e valorização do setor sucro-energético brasileiro
• Personalidade do ano – UNA Brasil.
• Homenagem pelas inúmeras e relevantes contribuições na construção e consolidação de políticas e instituições de Ciência, Tecnologia e Inovação – MCTI
Livros publicados:
• Física do Estado Sólido
• Pró-álcool — a Única Alternativa para o Futuro
• As Sete Pragas da Universidade Brasileira
• Energia para o Brasil – Um Modelo de Sobrevivência
• Tecnologia e Desenvolvimento Nacional
• Energia Nuclear e outras Mitologias
• Um Roteiro para Música Clássica