Neste 30 de julho, data em que a NASA lançou a missão Mars 2020 em mais uma investida na busca de indícios de vida fora da Terra, vale a pena recordar histórias de outras missões que, também, se preocuparam com a vida extraterrestre, mas sob um diferente enfoque.
O Jornal do SindCT repercutiu interessante artigo da BBC1, do dia 4 de julho de 2020, sobre a “escandalosa” mensagem que o astrônomo Carl Sagan teria enviado aos extraterrestres. O interessante artigo chama a atenção para a histórica controvérsia criada pela imagem do corpo feminino incluída na Placa Pioneer. Este episódio, pitoresco para os dias atuais, serve para lembrar da dificuldade que áreas científicas e técnicas, e a espacial é uma delas, encontram quando seus caminhos cruzam os da política, das artes, da cultura e dos costumes.
Antes de prosseguir, é relevante comentar que o artigo da BBC, também, descreve em detalhes como o cientista Carl Sagan e seus colaboradores enfrentaram a, então, inusitada questão de “redigir”, de forma simbólica e pictórica, uma mensagem que poderia, em tese, ser decodificada por uma civilização alienígena. A elegante e talvez única possível solução foi recorrer à arte e aos princípios da física e da matemática, estes últimos que sempre estiveram e estarão em vigor em milhões de anos, seja lá em que canto for do universo, para o caso da nave um dia ser encontrada por uma civilização alienígena e inteligente. Isso diz muito de alguns princípios unificadores por detrás da criação do Universo, independentemente das convicções de cada um.
Mas o assunto do título é que as controvérsias havidas quando da elaboração da Placa Pioneer serviram como lições aprendidas para um empreendimento posterior, e muito maior e mais complexo, que foi o do Voyager Golden Record2, projeto que produziu discos de cobre recobertos a ouro, manufaturados em oito cópias, duas das quais foram montadas nas naves Voyager 1 e 2, lançadas em 19773.
A missão Voyager original, que era explorar Júpiter e Saturno, foi posteriormente estendida, passando a incluir Urano e Netuno, e hoje, passados mais de 40 anos de seu lançamento, é caracterizada como Voyager Interstellar Mission4. Originalmente, foi idealizada em razão do alinhamento de planetas do sistema solar que ocorreria nos anos 70 e 80. Esta missão, ainda, permanece como uma das mais instigantes e fenomenais realizações do homem no espaço.
Mas, e o seu disco? Bem, ele foi concebido em uma época em que os meios digitais de gravação, como os discos com leitura a laser, inexistiam. Trata-se de um long-play convencional que hoje é, também, conhecido como “vinil”, de 12 polegadas, e com ele foi enviada uma agulha – para quem se lembra delas – que permitirá, quem sabe, em um futuro distante que seres de fora da Terra possam dele extrair algum sinal5. Em tempo, após deixarem o sistema solar, transcorrerão quarenta mil anos até que as naves se aproximem de qualquer outro sistema planetário.
Nos discos foram gravadas saudações, sons da Terra, imagens e músicas6. Como a quantidade de informação que poderia ser gravada no disco era limitada, seus criadores tiveram que enfrentar o gigantesco desafio de sintetizar em vozes, sons, imagens e músicas, toda ou quase toda, a variedade da Terra em seus aspectos físicos, humanos e artísticos.
O processo foi uma epopeia de um pequeno grupo liderado novamente por Sagan, impossível de ser sintetizada em um breve artigo, mas cujo resultado final transcende, em muito, a simples coleção gravada e lançada ao oceano cósmico. A seleção feita reflete muito da variedade física do planeta Terra, de suas minorias e de sua diversidade cultural – foi sem dúvida um momento da história recente em que o reconhecimento daqueles que estão distantes dos centros econômicos, culturais e tecnológicos hegemônicos tornou-se um imperativo moral, pelo simples fato de que a Terra também não está no centro de coisa alguma.
O livro Murmurs of Earth, de autoria do próprio Sagan e outros colaboradores, descreve em detalhe o processo de criação do disco. Nele há uma referência aos dilemas enfrentados, resumidos assim: “Afinal, enviando uma espaçonave para fora de nosso sistema solar, estamos fazendo um esforço para “desprovincializar”, superar nossos interesses nacionalistas e ingressar em uma comunidade de sociedades que exploram o espaço, se houver alguma.”. Uma interessante leitura em tempos de antiglobalismo …
Também, fez jus ao fato bem conhecido por todos que militam nesta área, de que vista de fora do planeta a Terra não tem fronteiras e que de muito longe – este, também, um resultado da missão Voyager, não passamos de um “pálido ponto azul” no universo.
A propósito, a ideia do Pale Blue Dot, também, veio da genialidade de Carl Sagan, que propôs que fosse feita uma imagem da Terra pela Voyager 17, uma outra batalha por ele empreendida, posto que havia o temor de que o instrumento a bordo da sonda pudesse vir a ser “cegado”, ou danificado, pela luz solar ao se voltar para trás. Outro fato interessante, pois lembra até um episódio bíblico, não é mesmo?
Ao final a imagem foi obtida e imortalizada pelo próprio cientista em reflexões nas quais ele fala da nossa Terra e de suas mazelas. Seu texto continua surpreendentemente atual, particularmente no momento em que enfrentamos um inimigo comum, na forma de uma enfermidade causada por um vírus que não distingue quem quer que seja nesse pequeno ponto do espaço que é o nosso lar.
Dessa ideia, também, decorreu uma das inumeráveis realizações pioneiras dessa missão, o chamado Retrato da Família (Family Portrait), o inesquecível mosaico de imagens produzido em fevereiro de 1990, quando a Voyager 1 estava a 6 bilhões de quilômetros da Terra, retratando, além do nosso planeta, também, o Sol, Júpiter, Vênus, Saturno, Urano e Netuno8.
Para concluir, uma outra pitada de controvérsia que acompanhou o projeto do disco. Uma das músicas escolhidas para integrar o restrito rol de obras que representariam a humanidade era Here Comes the Sun, dos Beatles. A fama do grupo, o significado cultural de sua música, e o título dessa composição em particular, justificavam plenamente sua indicação. Quando consultados, consta que os membros do grupo musical concordaram de pronto, mas não eram eles os detentores de seus direitos autorais. A gravadora na época imaginou quanto deveriam custar os direitos autorais universais para autorizar a gravação da referida música, e apresentou uma conta maior que o orçamento para o projeto completo do disco, que seria impossível pagar9. Consta, também, que para as demais canções foi feito um pagamento simbólico de dois centavos de dólar pelos direitos de uso. Não naquele caso. Ao final, não houve acordo e se perdeu a oportunidade de enviar para os confins do universo uma lembrança de nossa cultura e de nosso Sol. Paciência. No entanto, as demais obras incluídas no disco permanecem em uma viagem que poderá ser eterna, testemunhas de nossa civilização para além de quando nos tornarmos pó, para depois de nosso Sol morrer10.
1 – O que diz a ‘escandalosa’ mensagem que o astrônomo Carl Sagan enviou aos extraterrestres. Disponível clicando aqui.
2 – Voyager. Disponível em https://voyager.jpl.nasa.gov/.
3 – The Golden Record. Disponível em https://voyager.jpl.nasa.gov/golden-record/.
4 – Mission Overview. Disponível em https://voyager.jpl.nasa.gov/mission/.
5 – The Golden Record Cover. Disponível em https://voyager.jpl.nasa.gov/golden-record/golden-record-cover/.
6 – What are the contents of the Golden Record? Disponível em https://voyager.jpl.nasa.gov/golden-record/whats-on-the-record/.
7 – Pale Blue Dot. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Pale_Blue_Dot.
8 – Family Portrait (Voyager). Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Family_Portrait_(Voyager).
9 – A Space Jam, Literally: Meet the Creative Director Behind NASA’s ‘Golden Record’, an Interstellar Mixtape. Disponível em https://www.vice.com/da/article/rgpj5j/the-golden-record-ann-druyan-interview.
10 – Review: The Voyager spacecraft holds a golden record for aliens. ‘Vinyl Frontier’ tells why. Disponível em https://www.latimes.com/books/la-ca-jc-review-vinyl-frontier-jonathan-scott-20190711-story.html.