O gênio colombiano Gabriel García Márquez nos legou um conto publicado no final de 1961 cujo título (El coronel no tiene quien le escriba, no original), com a devida licença, inspirou este artigo.
No conto, um Coronel de 75 anos consome seus infindáveis dias aguardando a chegada de uma carta que lhe concederá a tão ansiada pensão. Ele também espera vender um galo de briga para amenizar a cruel pobreza em que vive com sua esposa. Como em outras obras magistrais do autor, a solidão, a esperança vã, o passar arrastado do tempo e a aparente inutilidade da vida dos personagens são a tônica.
De volta aos dias atuais.
A Agência Espacial Brasileira – AEB, presidida por um Coronel da reserva da Força Aérea, também parece caminhar para uma vida de isolamento no que tange a grandes projetos, mas com uma única esperança: o uso comercial do Centro Espacial de Alcântara – CEA, preferencialmente por alguma empresa americana.
Neste exato momento, um Chamamento Público está em curso na AEB, com a expectativa de que, até o final de outubro, sejam a ela enviadas propostas finais de empresas que já teriam manifestado interesse em “operação, veículo lançador e operação de lançamento no Brasil”.
Esta iniciativa é desdobramento do ambicioso plano apresentado pela AEB e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI, o qual foi concebido graças à entrada em vigor do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas – AST junto aos Estados Unidos, firmado em Washington, em 18 de março de 2019, e promulgado pelo Decreto No 10.220, de 5 de fevereiro de 2020.
O assunto é quase tão antigo quanto o Centro de Lançamento de Alcântara – CLA, inaugurado em março de 1983. Ao longo desses quase 40 anos, inúmeros planos e estudos foram concebidos, mas nenhum deles foi de fato implementado. Cada plano tentou, a seu modo, dar respostas aos desafios de ter uma base de lançamentos operacional, capaz de atender às demandas do Estado Brasileiro, e ter áreas de lançamento, sítios, que pudessem ser utilizadas e operadas por empresas privadas de forma competitiva, ambos em um cenário em que as históricas pendências sociais e fundiárias tivessem sido de fato resolvidas, ou ao menos tivessem um encaminhamento promissor, em particular quanto às comunidades locais quilombolas.
Nada disso se materializou até hoje, com exceção, talvez, da infraestrutura espacial básica que já permitiria a operação de um veículo lançador de satélites nacional de pequeno porte, se tivéssemos um. Recorrendo à terminologia de um dos inúmeros planos formulados, restam ainda pendências importantes para as infraestruturas energética, logística, social e urbana, além de um marco legal favorável às atividades privadas.
Muitos têm depositado enorme esperança de que o denominado Centro Espacial de Alcântara – CEA venha a tornar-se economicamente sustentável, considerando as cifras milionárias que a indústria espacial hoje movimenta, que são da casa de centenas de bilhões de dólares, quando consideramos o setor de serviços. Mais que isso, que venha a tornar-se também fonte “quase inesgotável” de recursos para os governos local, estadual e federal, extraídos na forma de taxas e impostos que trariam incontáveis benefícios sociais, bem como para o próprio programa espacial brasileiro.
Separando deste futuro promissor a realidade atual, há inúmeros obstáculos a serem vencidos. As mudanças recentes no modelo econômico dos lançamentos e a transição para atores privados que hoje triunfam nessa indústria com seus sistemas quase integralmente recuperáveis, lançamentos múltiplos e frequentes, operando em bases de lançamento nacionais públicas e privadas já consolidadas são, talvez, os maiores desses obstáculos. Nessa revolução que ocorre fora do Brasil reside a chave para que seja construído, ou não, um plano de negócios sustentável em Alcântara – mas cabe às empresas interessadas demonstrar que isto é possível.
Qualquer que seja o plano de negócios apresentado, engana-se quem crê que ele poderá prescindir de investimentos públicos substanciais, e este é outro desafio no cenário econômico atual, de virtual incapacidade do Estado Brasileiro de realizar investimentos de grande porte e longo prazo. Também resta a questão social e fundiária, tema de extenso trabalho do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro – CDPEB a partir de 2018, mas que também não foi capaz de proporcionar resultados positivos até o momento.
Mais recentemente, em artigo postado no SindCT em 20/10/2020 (Mais um capítulo da novela “A Saga do Programa Espacial Brasileiro”), fica claro que o cenário que já era difícil está se agravando rapidamente, tanto no ambiente nacional, nas questões que envolvem as comunidades locais, com uma nova onda de judicialização, quanto no ambiente externo, no qual crescem movimentos nos Estados Unidos contrários à participação americana em futuros negócios em Alcântara. Acrescente-se também a crise econômica mundial provocada pela Covid-19 e a perspectiva real de que venha a ocorrer uma mudança de governo nos Estados Unidos e temos um cenário pouco favorável a compromissos com alto risco e recuperação de investimentos apenas em longo prazo.
Com todos estes fatores em jogo, seria difícil assegurar que alguma empresa se interessará pelo uso de Alcântara. Ou, caso alguma interessada surja, se conseguirá vencer as intrincadas etapas de negociação de um contrato com a Força Aérea, a quem foi delegada a tarefa, e ainda equilibrar os riscos do empreendimento.
Com tudo isso, o tempo continua a passar nas vastas solidões de Alcântara. Será que ao final alguém escreverá ao Coronel?