Em continuação ao artigo anterior (clique aqui para ler), é preciso afirmar que, sob a égide dos princípios e diretrizes originais da CF-1988, o Brasil poderia ter se transformado, do ponto de vista do protagonismo do Estado nacional em sua relação com o domínio econômico, numa espécie de China do mundo ocidental. Para tanto, é preciso ter claro que:
“A China decide enfrentar os dissabores da crise financeira anunciando, em novembro de 2008, um pacote de investimentos da ordem de US$ 600 bilhões a serem executados por imensas empresas estatais. Empresas tais forjadas em um processo de fusões e aquisições, no final da década de 1990, que resultou no surgimento de 149 conglomerados empresariais estatais. Dados suficientes para demonstrar que: 1) o país atingiu uma capacidade de coordenação e socialização do investimento inimaginável para qualquer país capitalista; 2) espantosa capacidade financeira de executar investimentos de qualquer ordem, fazendo base a novas e superiores formas de planificação econômica; 3) os conglomerados empresariais estatais conformam-se como o núcleo da consolidação da NFES (Nova Formação Econômica e Social).” [Elias Khalil Jabbour, Alexis Toríbio Dantas, Carlos José Espíndola. Considerações iniciais sobre a “nova economia do projetamento”. Florianópolis: Geosul, v. 35, n. 75, p. 17-42, mai./ago. 2020. http://doi.org/10.5007/1982-5153.2020v35n75p17 ]
Ao invés disso, o Brasil encontra-se, mais uma vez em sua história, diante de desafios e escolhas irreconciliáveis. Ou se submete aos processos de moralização arcaica dos costumes, valores antidemocráticos e criminalização da política, sindicatos e movimentos sociais, ou se levanta e luta. Ou adota o caminho da mediocridade e da subalternidade econômica, política e social, mas também intelectual, moral e cultural, ou se reinventa como nação para reescrever o seu próprio destino histórico.
Este tom de alerta é importante porque para enfrentar tais desafios e lutar por um serviço público de qualidade no Brasil, é preciso ter claro que em todas as experiências internacionais exitosas de desenvolvimento, é possível constatar o papel fundamental do ente estatal como produtor direto, indutor e regulador das atividades econômicas para que essas cumpram, além dos seus objetivos microeconômicos precípuos, objetivos macroeconômicos de inovação e inclusão produtiva e de elevação e homogeneização social das condições de vida da população residente em território nacional.
Para tanto, é necessário constatar haver relação positiva entre o ente estatal, a organização pública e o desenvolvimento inclusivo, relação essa que passa por uma compreensão acurada e uma ação política e governamental consciente acerca das seguintes dimensões relevantes da administração pública federal: i) estrutura, organização e marcos legais; ii) seleção e formação de pessoas; iii) interfaces sócio-estatais; iv) interfaces federativas; v) interfaces entre poderes; vi) arrecadação, financiamento, orçamentos e gastos públicos; e vii) planejamento, regulação, gestão e controle. Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca do peso e papel que o Estado deve possuir e desempenhar no campo do desenvolvimento brasileiro no século XXI.
Ademais, se é verdade que o desenvolvimento brasileiro no século XXI deve ser capaz de promover, de forma republicana e democrática: i) governabilidade e governança institucional; ii) soberania, defesa externa, segurança interna e integração territorial; iii) infraestrutura econômica, social e urbana; iv) produção, inovação e proteção ambiental; e v) promoção e proteção social, direitos humanos e oportunidades adequadas a toda população residente, então o desenho organizacional do Estado brasileiro deve possuir tantas carreiras estratégicas quanto as necessárias para atender a essas grandes áreas de atuação governamental.
Neste sentido, há cinco fundamentos históricos da ocupação no setor público, presentes em maior ou menor medida nos Estados nacionais contemporâneos, que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e ao desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo. São eles: i) estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador; ii) remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral; iii) qualificação elevada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações; iv) cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e v) liberdade de organização e autonomia de atuação sindical. Desta maneira, o aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho difícil, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo. Não há, portanto, choque de gestão algum que supere ou substitua o acima indicado.
Por isso, uma verdadeira política nacional de recursos humanos no setor público deve ser capaz de promover e incentivar a profissionalização da burocracia pública a partir do conceito de ciclo laboral no setor público, algo que envolve as seguintes etapas interligadas organicamente: i) seleção; ii) capacitação; iii) alocação; iv) remuneração; v) progressão e vi) aposentação. Ademais, deve atentar para os fatores que realmente garantem ganhos de produtividade e de desempenho institucional no Setor Público: i) ambiente de trabalho; ii) incentivos não pecuniários e técnicas organizacionais; iii) trilhas de capacitação permanente; iv) critérios para avaliação e progressão funcional; v) remuneração adequada e previsível; vi) fundamentos da estabilidade e critérios justos para demissão; e vii) condições de realização dinâmica e retroalimentação sistêmica entre as dimensões citadas. Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca do ciclo laboral no setor público e suas relações com os temas e objetivos da produtividade e do desempenho institucional do Estado brasileiro no século XXI.
Tudo somado, cabe então perguntar: quais as bases institucionais e políticas para um serviço público de qualidade no Brasil? Não deve haver dúvida de que a resposta passa pela republicanização e pela democratização das estruturas e formas de funcionamento dos aparatos governamentais, com planejamento governamental participativo, gestão pública democrática, controles burocráticos do Estado voltados para a transparência dos processos decisórios, efetividade das ações públicas e institucionalização da participação social em todas as etapas dos circuitos decisórios das políticas públicas. Para tanto, a reforma tributária necessária deve ser progressiva na arrecadação e redistributiva no gasto. Ademais, há que se promover a refundação democrática das organizações político-partidárias e a criação de novos mecanismos de representação e deliberação coletivas. É preciso um combate sem tréguas aos privilégios, à injustiça e à corrupção, aliado a medidas de profissionalização e valorização da ocupação no (e do) serviço público, tais que uma verdadeira política de recursos humanos esteja ancorada e seja inspirada pelos valores e princípios da república, da democracia e do desenvolvimento nacional.
Em suma: hoje em dia, por meio das entidades representativas dos servidores, o Brasil possui o mais completo estoque potencial de conhecimentos sobre as estruturas e as formas de funcionamento da administração pública federal brasileira. Seja por meio de estudos técnicos que elas produzem, seja simplesmente pelo conhecimento tácito que os servidores possuem sobre o cotidiano de virtudes e problemas do Estado, o fato é que somos nós, os próprios servidores públicos, os que mais têm condições teóricas e práticas de produzir a melhor explicação situacional possível e as mais adequadas e aderentes proposições ou soluções para os problemas de desenho organizacional e de desempenho institucional do governo federal.
Em parceria com o Fonacate (Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado), a Afipea-Sindical (Associação e Sindicato Nacional dos Funcionários do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) tem trabalhado praticamente todos os temas da Reforma Administrativa, razão pela qual julgamos pertinente lançar a público uma série de documentos chamados Cadernos da Reforma Administrativa (http://afipeasindical.org.br/noticias/cadernos-sobre-reforma-administrativa/), com intuito de qualificar o debate junto ao governo, parlamento, mídia, academia etc.
Os assuntos que deverão compor os Cadernos da Reforma Administrativa estão sendo debatidos e produzidos sob a constatação de que a dimensão fiscal que vem orientando todo o conjunto de propostas e discursos governamentais sobre o tema (vide PECs 186, 187 e 188) é claramente insuficiente, diria mesmo, contraproducente, para uma compreensão e solução adequadas acerca dos problemas que, de fato, estão presentes da administração pública federal brasileira. Desta maneira, os Cadernos da Reforma Administrativa irão percorrer alguns dos principais aspectos que deveriam compor o centro de qualquer reforma que, de fato, se pretenda voltada à racionalização da estrutura estatal e à melhoria do desempenho institucional agregado do setor público brasileiro, medido este não apenas pelo critério rápido e fácil da eficiência do gasto público, mas principalmente pelos critérios da eficácia e efetividade da ação pública. Afinal de contas, ao Estado importa ser agente capaz e ativo no enfrentamento e resolução dos grandes problemas nacionais, tendo sempre como destino final a melhoria das condições de vida da população e a projeção do Brasil como nação livre, soberana, sustentável, igualitária, democrática, justa etc.
Para tanto, contamos com a leitura atenta e crítica de todos e todas, bem como com toda ajuda possível na divulgação e na defesa dessas ideias para uma reforma administrativa de natureza republicana e democrática, voltada ao fortalecimento de um modelo de desenvolvimento nacional sustentável, inclusivo, soberano, que tenha no fortalecimento das funções sociais de Estado e na valorização e profissionalização dos servidores públicos um de seus eixos principais.