Desmonte da CF-1988 e do seu projeto de Estado e de desenvolvimento nacional
Desmonte da CF-1988 e do seu projeto de Estado e de desenvolvimento nacional

Desmonte da CF-1988 e do seu projeto de Estado e de desenvolvimento nacional

No Brasil, o tempo todo parece que convivemos com alguma necessidade de reformar profundamente as bases institucionais (vale dizer: estrutura organizacional e formas de funcionamento) do Estado nacional, mormente em nível federal. É como se a CF-1988 não houvesse criado ou sugerido, ela mesma, bases institucionais razoavelmente adequadas para uma transformação orgânica positiva do Estado brasileiro e de sua administração pública federal.

Pois justamente no momento atual, em que a CF-1988 se vê mais vilipendiada pelo atual governo federal, é que é preciso dizer que sim, ela o fez. E o fez no sentido da republicanização dos aparatos estatais, da democratização e descentralização das relações do ente estatal com a sociedade civil e com a comunidade política, do fortalecimento das capacidades estatais fundamentais (isto é: monopólios estatais clássicos sobre a moeda, a tributação, a fabricação de leis, a representação externa e sobre o uso controlado da força), além do fortalecimento de instrumentos governamentais para uma boa atuação pública, tais como o planejamento governamental e o orçamento público via PPA-LDO-LOA, o investimento público indutor do desenvolvimento por meio dos bancos e fundos públicos, das empresas e demais agências estatais, e por fim, mas não menos importante, das funções típicas da gestão pública e do controle estatal e social sobre atos de governo e procedimentos administrativos que se realizam por meio de um leque amplo, complexo e dinâmico de políticas públicas, situadas, ademais, em contexto federativo nada trivial.

É claro que nesses mais de 30 anos de vigência, talvez seja possível estabelecer, ao menos três momentos, por meio dos quais um processo contínuo e cumulativo de desmonte da CF-1988 e do próprio projeto de Estado e de desenvolvimento nacional vem se desenrolando no país. Grosso modo, entre 1988 e 2002, teria vigorado um momento de contestação e acomodação do pacto constitucional original. Depois de o governo Sarney ter-se colocado publicamente contra a CF-1988 recém-promulgada, o conturbado governo Collor de Mello buscou contestá-la abertamente, sem, contudo, ter tido êxito em suas tentativas de reformas. Após seu impeachment, em 1992, o país vivenciou, sob o governo provisório de Itamar Franco, um período de acomodação geral, pois a despeito da revisão constitucional havida em 1993, o que estava em jogo era a transição política para as próximas eleições, que haveria de ser em 1994.

Durante os dois mandatos de FHC houve novamente um período forte de contestação e reformas constitucionais de grande monta, sobretudo entre 1995 e 1998. O ímpeto das mesmas se arrefeceu ao longo do segundo mandato (1999 a 2002), tanto em função das crises econômica e social em curso, como também por causa da aglutinação de forças políticas de oposição ao governo, que conseguiram barrar ou adiar votações importantes para o projeto liberal de reformas constitucionais. Desta forma, apesar das 45 Emendas Constitucionais aprovadas em seus primeiros 14 anos de vigência democrática, a maioria das quais com caráter claramente contrário ao espírito original das leis, pode-se dizer que houve também certa acomodação de princípios e diretrizes constitucionais relevantes para os pactos sociais e políticos de então.

Por sua vez, entre 2003 e 2014, teria havido um momento que poderíamos chamar de acomodação e conciliação relativamente à CF-1988 e propostas de reformas. Durante os dois mandatos presidenciais de Lula da Silva (2003 a 2010, mas sobretudo no segundo) e ainda durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011 a 2014), a despeito de 45 Emendas Constitucionais aprovadas, quase todas elas fruto de embates políticos e ideológicos de monta, de modo que nem todas possuíram sentido contrário ao espírito original das leis, houve também esforços institucionais no sentido de acomodar e implementar dispositivos constitucionais importantes, bem como conciliar a discussão de temas controversos e mesmo postergar a aprovação de medidas contrárias ao ideário menos liberal dos governos de então.

Por fim, entre 2015 e 2020, já num contexto de crises econômica e política abertas, cujo desfecho institucional foi – naquele momento – a destituição de Dilma Rousseff e a tomada de poder pelo consórcio liberal-conservador formado por toda a oposição parlamentar de então, e também por parte expressiva da coalizão de apoio (de centro e de direita) reeleita em 2014, conforma-se um momento que veio caracterizando-se como sendo de destituição e desconstrução abrangente, profunda e veloz dos fundamentos basilares da CF-1988.

Mas isso apenas se fez possível em função das situações (formais e informais) de excepcionalidade de medidas e criminalização de direitos e atores sociais que se vem anunciando e produzindo principalmente desde 2015 (com o aguçamento da ingovernabilidade já durante o primeiro ano do segundo mandato de Dilma) e, com maior ênfase, desde o golpe em 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018, a partir de quando os blocos conservadores no comando dos três poderes da República, mais Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal, grande mídia corporativa e grande empresariado nacional e internacional, financeiro e financeirizado, valendo-se da anomia, alienação, desinformação, cooptação, desalento e/ou resignação social em curso, vem conseguindo pautar e sancionar (até julho de 2020) mais de 15 outras Emendas Constitucionais e algumas tantas reformas infraconstitucionais abertamente contrárias ao pacto social e político forjado – e em lenta, gradual e insegura acomodação – desde a CF-1988.

Em suma, dada a quantidade total de E.C. já aprovadas e seu perfil majoritariamente contrário ao espírito original da CF-1988, é possível afirmar que, trinta anos depois, o Brasil possui hoje, na prática, uma Constituição Federal Desfigurada, sem, no entanto, ter vivenciado, para tanto, uma outra Assembleia Constituinte assentada na soberania popular. E a questão é que, para além de seu tempo formal de vigência, a CF-1988 foi importante porque, sob suas regras gerais, o país instituiu e tentou implementar (não sem resistências de toda ordem, várias delas infelizmente exitosas) um amplo conjunto de direitos civis, políticos, sociais e econômicos.

Grande parte da (ainda que pífia) melhoria distributiva havida, por exemplo, entre 1995 e 2015, deveu-se aos esforços de implementação de dispositivos constitucionais atrelados às políticas sociais em suas diversas áreas de atuação, tais como: previdência e assistência social, trabalho e renda, educação e saúde, dentre outras. Tal resultado distributivo, é bom que se diga, ocorreu pelo lado do gasto público, e foi contrabalançado por tendências concentradoras advindas tanto da estrutura tributária regressiva como da primazia do gasto financeiro sobre o gasto real, ambos os aspectos, ou presentes na CF-1988 desde o início, ou posteriormente nela sacramentados por meio de Emendas Constitucionais que pioraram aspectos cruciais já problemáticos do texto constitucional nesses temas ligados à ordem tributária, econômica e financeira.

Por outro lado, a CF-1988 também buscou reorganizar aparatos estatais em diversos campos de atuação, promovendo uma verdadeira reforma administrativa em termos de reestruturação e modos de funcionamento da máquina pública. São exemplos disso os regramentos postos em operação (também aqui de forma diferenciada no tempo e muitas vezes contraditória entre si) nas áreas do direito econômico e financeiro, da arrecadação tributária, da orçamentação e gastos públicos, do planejamento e gestão governamental, da participação social e controles estatais, além dos aspectos formais relativos ao funcionamento e (des)equilíbrio entre poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público tendo nascido e se fortalecido desde então…) e entre entes federados.

Desta maneira, dada sua abrangência e profundidade temática, a CF-1988 nunca foi consensual no país, razão pela qual desde sua promulgação a sociedade brasileira vem se dividindo entre aqueles que simplesmente querem derrogá-la, visando instaurar uma ordem constitucional majoritariamente liberal-conservadora, e aqueles que desejam ou mantê-la em seus traços fundamentais, ou fazê-la avançar em termos sociais, econômicos, políticos etc., num sentido de maior controle estatal sobre a economia e maior congraçamento tanto populacional quanto territorial.

A questão de fundo, portanto, é que, desde a promulgação da CF-1988, há no Brasil, grosso modo, dois projetos políticos antagônicos em disputa no debate corrente. De um lado, coloca-se novamente em pauta – por setores conservadores da sociedade, comunidades da política (partidos, sindicatos e outras agremiações) e da própria burocracia, além da mídia e empresariado – o caminho liberal, de orientação privatista e individualista, que havia vivenciado melhores dias na década de 1990, mas que desde 2016 vem conseguindo impor uma agenda abrangente, profunda e veloz de retrocessos institucionais em áreas críticas da regulação econômica, social e política do país.

De outro lado, embora raramente tenha tido força política suficiente no cenário nacional, permanece como possibilidade – defendida por setores do campo progressista, dentro e fora das estruturas de governo – a via da expansão ou universalização integral dos direitos civis, políticos e sociais, tais quais os promulgados pela CF-1988. Todavia, é preciso ter claro que as bases materiais e as condições políticas hoje vigentes para a efetivação de tais direitos estão ainda mui distantes das mínimas necessárias à sua consecução.

Neste sentido, somos forçados a concluir que o atual governo Bolsonaro caminha rapidamente para uma estratégia de acirramento de contradições relativamente aos segmentos da sociedade não alinhados a seu projeto de poder. Mas sendo tais segmentos mais numerosos e representativos da diversidade brasileira que os seus seguidores, deverá haver uma inclinação autoritária crescente por parte das frações de classe no poder no governo Bolsonaro, com vistas a impor – até mesmo pela força bruta – os seus anseios e projetos.

Oxalá a comunidade internacional democrática e a sociedade brasileira, conscientes do perigo autoritário em curso, possam rapidamente perceber a abrangência, a profundidade e a velocidade desta agenda retrógrada para então se reorganizarem coletivamente e se reposicionarem politicamente com vistas à recuperação das tendências recentes de construção da República, da Democracia e do Desenvolvimento no espaço nacional.

Continua…

Autor

  • Doutor em Economia, desde 1997 é servidor público federal no IPEA e, desde 2019, é presidente da AFIPEA-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões aqui emitidas são de inteira responsabilidade do autor.";"";"";"";"";"";TRUE 61;"Paulo Lindesay";"";"Diretor da Executiva Nacional da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo da Auditoria Cidadã RJ