Entrevista com Laerte Coutinho
Entrevista com Laerte Coutinho

Entrevista com Laerte Coutinho

Em agosto deste ano, o SindCT completará 32 anos. Ao longo de nossa história, atravessamos diferentes governos, tivemos apoio de alguns políticos, trocamos a diretoria…, mas uma personalidade brasileira nos acompanha desde o início: Laerte Coutinho!

São da Laerte as imagens que utilizamos para ilustrar nosso boletim informativo Rapidinha.

Com mais de 50 anos de carreira, Laerte Coutinho é cartunista, ilustradora, roteirista, apresentadora e uma das quadrinistas mais importantes do Brasil.

Laerte iniciou sua vida profissional nos anos 70. Em conjunto com Luiz Gê, criou a revista Balão. Naquela época, Laerte ainda prestou serviços para a Placar, revista esportiva, e para a revista Banas. No ano de 1974, fez seu primeiro trabalho em jornal, na Gazeta Mercantil.

Nos anos 80, Laerte fez publicações em revistas: Geraldão, que tinha Glauco como editor, e Chiclete com Banana, de Angeli. Elas faziam parte da Circo Editorial, que depois acabou lançando a revista Piratas do Tietê, de Laerte. Em 1985, lançou “O Tamanho da Coisa”, sua primeira coletânea de charges publicada em livro.

Entre as principais publicações das quais participou, destacam-se O Pasquim e a Balão. Laerte também atuou em veículos de mídia mais conhecidos como os jornais O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo e as revistas Istoé e Veja.

Alguns de seus personagens mais populares são: Overman e os Piratas do Tietê. Em criação conjunta com os cartunistas Glauco, Adão Iturrusgarai e Angeli, Laerte foi cocriadora e desenhista de Los Três Amigos.

Laerte também atuou como roteirista, tendo colaborado em diversos programas da Rede Globo. Escreveu scripts para os programas humorísticos TV Pirata e para as primeiras temporadas de Sai de Baixo. Ainda na área do humor, escreveu para o quadro Vida ao Vivo que ia ao ar durante o Fantástico, em 1997.

Laerte também escreveu o programa infantil TV Colosso e o script de cinema para Super-Colosso: A Gincana da TV Colosso.

Em 2010, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Laerte revelou sua opção pela prática do crossdressing, pessoas que usam roupas e objetos associados ao sexo oposto. Nesta nova etapa, fez participações em diversos programas de televisão, rádio e veículos impressos. Foi entrevistada pelo tradicional Roda Viva, programa da TV Cultura.

Ainda em 2010, participou do roteiro e storyboard do curta de animação Los tres amigos, dirigido por Daniel Messias e ganhador do Troféu HQ Mix.

Em 2012, Laerte foi protagonista do curta-metragem Vestido de Laerte, dirigido por Cláudia Priscilla e Pedro Marques. O filme foi vencedor nas categorias melhor curta e melhor direção do Festival de Cinema de Brasília de 2012.

Nesse mesmo ano, Laerte fundou a ABRAT, Associação Brasileira de Transgêneros, organização que, segundo seu site oficial, “congrega pessoas transgêneras, seus familiares e amigos, bem como profissionais, pesquisadores e demais interessados na temática da transgeneridade, com o propósito de defender a livre expressão da identidade transgênera, os direitos civis das pessoas transgêneras e a sua maior compreensão, aceitação e inclusão na sociedade brasileira contemporânea”.

Atualmente, Laerte se define como “mulher possível”, ela é o que queria ser.

No ano de 2015, Laerte contribuiu com o documentário De Gravata e Unha Vermelha, da cineasta Miriam Chnaiderman, filme que relata a realidade de transexuais, travestis e transgêneros, adeptos e entusiastas do crossdressing, debatendo sobre a construção individual do próprio corpo.

Em 2017, foi lançado o documentário Laerte-se, codirigido por Eliane Brum e Lygia Barbosa, que fala sobre o cotidiano e a transformação na arte e na vida pessoal da artista.

Este ano, o SindCT teve a honra de entrevistá-la!

Laerte Coutinho. Foto: Cadu Bazilevski/SJSP
Laerte Coutinho. Foto: Cadu Bazilevski/SJSP

Jornal do SindCT: Em 1968 você concluiu o curso de desenho livre na FAAP. Mas, para ingressar num curso assim, você já sabia que tinha um dom. Quando, e como, você se descobriu como ilustradora/chargista?

Laerte Coutinho: Era um “curso livre” – hoje se chamaria “oficina”. Não lembro quem indicou, mas me interessou. Meus pais sempre me incentivaram e deram apoio a tudo o que me interessasse. Foram 3 anos, eu tinha uns 15 quando entrei. Naquela fase tinha algumas pretensões na área de pintura e desenho, ambicionava me desenvolver como se estivesse na Renascença. O desenho de humor existia, mas como expressão secundária.

JS: Ao logo da sua carreira, você acumulou alguns prêmios, inclusive no cinema. De todos os trabalhos que fez, existe algum pelo qual você tenha mais carinho?

LC: Difícil dizer. Depois de feitos, eu meio que tento esquecer deles. Não sou uma boa apreciadora dos meus próprios trampos…

JS: E algum afeto especial por um dos personagens que criou?

LC: Também não. Gostei de ter trabalhado com eles, tive prazer enquanto fazia. Mas é isso: passado o momento, já não ligo muito. A não ser como material para analisar e etc.

JS: Desde o início do nosso sindicato, utilizamos, em todas as publicações, alguma arte sua, pertencente ao seu livro “Ilustração Sindical”. Ao produzir esse material, você imaginava que seria tão utilizado pelos sindicatos e por tanto tempo?

LC: Achamos que seria, sim, bastante utilizado. Trata-se de uma reunião de ilustrações que eu fiz na Oboré, para jornais sindicais. Tinha certeza de que podiam ser utilizadas ainda.

JS: Em algum momento se arrependeu de liberar o uso das imagens dessa forma?

LC: Algumas vezes elas foram usadas por empresas, ou por grupos políticos, o que não estava permitido. Mas é difícil fazer fiscalização, aplicar algum tipo de multa.

JS: Com 50 anos de carreira, você já viu o país atravessar diferentes momentos políticos. Quando, na sua opinião, seu trabalho foi mais necessário?

LC: Puxa, não sei dizer. Para minha pessoa, sempre foi muito necessário! Para o país, ou o mundo…, já não sei dizer.

JS: Você sempre foi uma colaboradora dos movimentos sindicais e atualmente é membro do Conselho Editorial do jornal do Sindicato dos Jornalistas de SP. De uns anos pra cá, os sindicatos estão sendo difamados por uma grande parcela da população. A que você atribui essa campanha antissindicatos?

LC: O problema não é só os sindicatos serem “difamados” – é toda a população trabalhadora ser privada de seus direitos e de suas conquistas. As organizações sindicais sempre foram objeto de ataque por parte dos “de cima” – os ricos, os donos de meios de produção, usando difamação, mas também intervenção, prisão, golpes diversos, projetos de lei, buscando diluir o poder de negociação que os trabalhadores têm…

Atualmente conseguiram aprovar uma destruição mais ambiciosa, que literalmente reduziu as entidades sindicais à penúria e os trabalhadores à submissão. Temos muito a reconstruir…

JS: Em janeiro deste ano você foi internada com Covid-19 e necessitou permanecer na UTI. Como foi esse período pra você? Como é a recuperação dessa doença? Algumas pessoas relatam diferentes tipos de sequelas após a Covid. Isso aconteceu com você?

LC: Eu tive a sorte de poder contar com a presteza de atenções de amigos muito queridos e competentes – e também com o atendimento no Incor, um dos melhores equipamentos de saúde pública que existem.

Tive medo, angústia, mas em nenhum momento deixei de saber que estava tendo o melhor tratamento possível, longe dos “kits” que o convênio tentou me empurrar, antes mesmo do resultado do teste.

Não precisei ser intubada porque a aparelhagem que foi usada em mim foi de eficácia decisiva. Os dias em que estive na UTI permitiram acompanhamento minucioso da minha condição.

Não tive sequelas, pelo menos nenhuma perceptível até agora. Estou fazendo exercícios, de modo a superar o cansaço crônico que a doença deixa na pessoa.

JS: Que comparações podem ser feitas, se é que podem, entre o humor que você praticava na época da ditadura militar e agora com Bolsonaro?

LC: Aquela época, anos 70, anos 80, não era só a época da ditadura, assim como os dias atuais não são apenas os dias “de Bolsonaro” – era um tempo com referências bem diferentes, com ideias e visões típicas do período.

Por exemplo – um exemplo que não é nada casual -, estávamos saindo de um período repressivo e proibidor; nossa necessidade de desafogo e desafio nos levou a um tipo de produção à qual os parâmetros morais, éticos e de consciência da época não se opunham com a veemência e clareza com que o fazem hoje. Em outras palavras, histórias como as que fiz para os Piratas do Tietê ou para Los 3 Amigos continham um padrão de uso de violência e livre-trânsito por questões morais que hoje me incomoda. Enfim: as pessoas mudam, as ideias evoluem, o humor também se transforma.

JS: Na conjuntura atual, este humor auxilia na conscientização das pessoas?

LC: Não sei. Responder a isso implica em estabelecer uma “função do humor” que prefiro manter como um conceito amplo e multifacetado.

“Conscientização” tampouco é uma ideia simples, pra mim…

JS: Sempre marcando sua posição frente aos problemas do país, você tem notado uma mudança na reação das pessoas quando sua crítica é deste governo comparado aos governos anteriores?

LC: Se estou entendendo a pergunta, essas reações serão necessariamente diferentes – os governos são diferentes, as críticas são diferentes, o humor se transforma, etc.

Há alguns pontos que tornam este governo específico, “mais” diferente do que os outros, que é o fato de contar com uma substância fascista bem clara e central. Mas não sei como comparar com a reação das pessoas em outras situações.

JS: O que, possivelmente, mudou na forma e conteúdo deste tipo de humor em relação ao uso extensivo das novas mídias digitais?

LC: Essa é outra pergunta difícil de responder – pra mim. Penso nos memes, penso no alcance das redes, penso na veracidade das mensagens, nas linguagens de grupos e tribos…não consigo chegar a uma conclusão.

JS: Para uma pessoa como você é impossível não perguntar: qual a sua avaliação do atual governo, tanto no que diz respeito ao combate à pandemia, quanto à administração do país, de forma geral?

LC: Já devo ter dito isso nessa conversa, mas – em resumo – o país elegeu um governo cujo único projeto é a destruição. Isso foi dito explicitamente pelo Bolsonaro em várias ocasiões. Por que fizemos essa escolha enquanto povo é algo que vamos precisar entender e enfrentar. Mas a única resposta que nos cabe agora é derrotar esse grupo que chegou ao poder e recuperar o controle da nossa história.

JS: Como mulher, empoderada, considerada uma das mais importantes artistas de traço no país, que recado deixa para os mais jovens, que se espelham em você e buscam seu espaço na sociedade?

LC: Mais do que deixar recado, estou tentando entender o recado que essa gente está dando.

JS: Por favor, diga-nos, com toda a liberdade, algo queira dizer.

LC: Beijo!

Autor

  • Fernanda Soares é jornalista profissional formada há 28 anos. Em 2012 recebeu o prêmio Beth Lobo de Direitos Humanos das Mulheres, oferecido pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, por sua cobertura da desocupação do Pinheirinho. É autora do livro “A solução Brasileira - História do Desenvolvimento do Motor a álcool no Brasil”, publicado e distribuído pelo SindCT, de nove livros paradidáticos infantis, da editora Todolivro, e do livro "Tudo o que você sempre quis saber sobre a urna eletrônica brasileira", publicado pelo SindCT. Em julho de 2022, Fernanda ofereceu, gratuitamente, os direitos autorais do livro sobre a urna eletrônica ao TSE. Em 2023, recebeu a Medalha Cassiano Ricardo, oferecido pela Câmara Municipal de São José dos Campos.