Nos dias de hoje nos deparamos ocasionalmente com esses comunicados de falecimento na intranet do INPE, mas foi impossível ficar indiferente a este, no final do ano passado.
“Informamos o falecimento do servidor aposentado Sebastião Justino, 101 anos, ocorrido no dia 01 de dezembro de 2020, na cidade de São José dos Campos. Foi velado e sepultado no dia 01 de dezembro de 2020 no Cemitério Horto São Dimas, em São José dos Campos. Nasceu em 02 de dezembro de 1918, na cidade de Cambuquira – MG. O servidor trabalhou nas obras de fundação do INPE, sendo posteriormente contratado em 01 de agosto de 1971 como funcionário da jardinagem. Atuou ainda como faxineiro, auxiliar de conservação e limpeza, auxiliar rural e auxiliar de serviços gerais. Se aposentou no cargo de Auxiliar em C&T, em 09 de abril de 1991.”
Quase todos que o conheceram lembravam o Sr. Sebastião como aquele que cuidava da piscina da ADC do INPE. Sempre tranquilo, bem humorado, amigável. Quem estava em sua companhia percebia sua paz de espírito, uma fé inabalável na vida complementada por um sentimento de aceitação, que o deviam blindar das perturbações cotidianas. Isso tudo resultava na dignidade que transparecia e na sua sapiência como ser humano. Não uma sapiência em ciências, letras ou filosofia, mas em viver. Basta olhar esta fotografia, em que o Sr. Sebastião tem um olhar, ao mesmo tempo, alegre, sábio, amistoso, bondoso. A mais completa expressão da mineiridade!
Seu conterrâneo João Guimarães Rosa (1908-1067) assim descreve essa mineiridade, num artigo publicado na revista O Cruzeiro em agosto de 1957: “Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de africanos estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens.” Texto completo está aqui.
Sr. Sebastião sempre trabalhou, sempre seguiu em frente inabalável, como sempre o víamos, nós os frequentadores da piscina. Lembro dele me contando que na Revolução Constitucionalista de 1932, as tropas federais requisitavam os automóveis e caminhões particulares para serem usados no esforço de guerra e ele, adolescente, os guiava para esconderijos no mato, onde ficaram ocultos. Mas também contou que aqueles que entregaram seus veículos foram indenizados ou tiveram seus veículos revisados nas oficinas autorizadas.
Trabalhou e trabalhou. Deve ter parado com uns 90 anos. Inicialmente trabalhou na própria cidade natal mineira, Cambuquira, que faz parte do Circuito das Águas de MG e que tem como vizinhas Três Corações ao norte e São Lourenço e Caxambu a sudeste. Depois trabalhou em Conceição do Rio Verde, a quase 40 km de estrada de Cambuquira. Foi capataz de fazenda, mas acabou migrando para São José dos Campos, para trabalhar na construção civil. Quando começou a trabalhar no INPE em 1971, já tinha quase 53 anos. Aposentou-se 20 anos depois em 1991, quase chegando aos 73 anos, mas continuou trabalhando como pedreiro autônomo.
Assim criou os cinco filhos, os encaminhou na vida, construiu casas para eles. E deixou também netos, bisnetos e tataranetos. Casou três vezes, enviuvou três vezes. Sua personalidade o fazia ser querido por todos. Negro, deve ter sofrido discriminação, ainda mais ao longo de tantas décadas passadas. Certamente resistiu, com sua calma, na luta e certamente, sem cicatrizes ou mágoas, estava acima dessas coisas. Essa sua mesma calma, sua fé na vida, sua dignidade, eram invejáveis. Após tantos anos de INPE, tanta água que rolou debaixo da ponte, tanta gente que passou, podemos saudá-lo: Sr. Sebastião, um grande ser humano, um grande Inpeano! Assim será lembrado por todos. Que Deus o tenha!