O cidadão brasileiro razoavelmente esclarecido deve ficar atônito a tentar compreender os capítulos da novela A Saga do Programa Espacial Brasileiro, estrelada por atores de limitados talentos e dirigida por forças ocultas.
Em 2019, o Brasil assinou o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os EUA (AST). O objetivo principal desse acordo é tornar realidade o Centro Espacial Alcântara (CEA). Alegam, nossas autoridades, que a assinatura do AST é condição sine qua non para que satélites com componentes americanos possam ser lançados do território brasileiro. Ainda, que o CEA possa ser confundido com o CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), em operação desde 1983. Sua instalação exigirá a construção de uma infraestrutura de lançamento de foguetes que vai além da área atualmente ocupada pelo CLA. De acordo com a matéria publicada em 19 de outubro no site UOL, a área será estendida de 8 para 20 mil hectares e implicará na realocação de 800 famílias quilombolas, que ocupam a área há séculos.
O problema já era de conhecimento das autoridades brasileiras, que, aliás, já o enfrentaram quando da instalação do CLA, na década de 1980. Talvez as autoridades daquela época tenham tido mais tato para lidar com esses brasileiros esquecidos pelo poder público. Outra possibilidade é que os tempos fossem outros e a realocação de famílias feitas à época, amigável ou não, não tenha sido trazida ao conhecimento da opinião pública. O fato é que as autoridades atuais, de estilo retrô, julgaram que, com os seus aliados do Centrão, a realocação dessas famílias pudesse ser realizada com a truculência que caracteriza o Brasil de hoje. A situação é tão surreal que a Agência Espacial Brasileira (AEB), se eximiu de comentar a notícia, sob a alegação de que o assunto está sob jurisdição do Ministério da Defesa, cujo ministro estava viajando.
A novidade é que congressistas americanos desejam impedir que os EUA invistam recursos no CEA, caso a remoção das famílias quilombolas seja efetivada. Há, por trás dessa ameaça, políticos do calibre de Bernie Sanders, senador que até há alguns meses pleiteava a candidatura presidencial pelo Partido Democrata dos EUA. Portanto, uma questão que poderia, e deveria, ser resolvida internamente, e civilizadamente, pelo governo brasileiro, se tornou agora uma questão de política externa. Como reconhecem ativistas negros brasileiros, faltou diálogo e sensibilidade do Ministério da Defesa para tratar deste assunto. O prognóstico é de que o autoritarismo do governo não mudará. No front externo, contudo, as nuvens acinzentam-se, na medida que é mais do que razoável a suposição de que haverá mudanças no cenário político americano. Não se pode apostar que tais nuvens transformar-se-ão em tempestade, porque pragmatismo rima com norte americanismo, mas será mais um desnecessário desgaste à imagem do Brasil no exterior.
O mais bizarro em mais esse capítulo de A Saga do Programa Espacial Brasileiro é que não parece haver qualquer interesse dos EUA em utilizar Alcântara como Centro de Lançamento. Entre 2009 e 2019, a quantidade de lançamentos espaciais passou de 78 para 102, ou seja, um aumento de 25%. No mesmo período, a quantidade de satélites lançados passou de 123 para 451, quase quatro vezes mais. Tal fenômeno é explicado pela diminuição no tamanho (massa) dos satélites, resultante do processo de miniaturização da eletrônica. Por conta disso, a propalada vantagem da posição estratégica de Alcântara perde força e morreremos com o discurso de que temos a melhor posição geográfica do mundo para lançamento de foguetes.
Enquanto isso, instituições do calibre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE) respiram por aparelhos.
Para quem assistiu a capítulos antigos de A Saga do Programa Espacial Brasileiro fica claro que, ao final, os quilombolas serão os “culpados” pela não efetivação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST). E para justificar o uso da palavra “saga” no título da novela, seu capítulo, exibido na tarde do mesmo dia 19, mostrou nosso ministro-astronauta exultante ao apresentar os resultados de uma pesquisa, dando conta de que a nitazoxanida (vermífugo) reduzia a carga viral da COVID-19. Como ele é ministro da Ciência e Tecnologia, sua assessoria preparou um gráfico para demonstrar a comprovação científica do medicamento. Mas não demorou para o seu chefe afirmar que a vacinação contra a COVID-19 não será obrigatória. Não demorou também para que se descobrisse que o gráfico apresentado pelo ministro era fake. Talvez o autor da representação gráfica tenha desejado apenas homenagear Moraes Moreira, morto em abril deste ano, ou, quem sabe, tentasse representar a situação presente, sob o som de Lá vem o Brasil descendo a ladeira.