O título deste artigo é o mesmo que me foi proposto para uma live patrocinada pelo pioneiro Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe (CIALC), da Universidade Autônoma do México, a UNAM, e me parece muito bem encontrado. Os colegas mexicanos acompanham, contristados e estarrecidos, o que se passa por aqui. A poucos dias de completar um ano e meio de governo, o capitão presidente – ou seria o presidente capitão? – é hoje visto como um exemplo de reacionarismo irracional em todo o mundo. Foi considerado o pior gestor nacional da crise do coronavírus.
No aspecto mais específico do papel dos militares no governo, nas últimas semanas fomos procurados por jornalistas da revista L’Express e dos diários Le Monde e Washington Post para falar sobre o assunto. Suas indagações foram as mesmas da imprensa daqui: qual o lugar dos fardados no governo? trata-se de um governo militar? há possibilidade de golpe ou de autogolpe no Brasil? o que pensam os militares? há divisões na caserna? O interesse pelo tema é tão grande que até o meu corretor ortográfico já memorizou inúmeros termos e nomes próprios relacionados a ele.
Para responder brevemente à primeira dessas perguntas, começaremos pela ideia de que o escalão avançado dos militares no governo são os hoje amplamente conhecidos generais escudeiros de Bolsonaro: Heleno, Ramos e Braga Netto (titulares, respectivamente, do Gabinete de Segurança Institucional, da Secretaria de Governo e da Casa Civil (!) da Presidência). A unir os quatro, a antiga convivência que data dos bancos da Academia Militar de Agulhas Negras (Heleno é mais velho), há mais de quarenta anos, além do trato diário no Palácio do Planalto. Acresça-se a isso uma total identidade de ideias. A eles junta-se o general Fernando, Ministro da Defesa, um cargo político criado para civis e ocupado por um general, desde o governo Temer.
Esses altos soldados, todos do Exército e um deles da ativa, licenciado do Alto Comando, são a imagem pública da volta dos militares ao primeiro plano da política. Em seguida, vêm os ministros da Esplanada, cerca de meia dúzia, dos quais o mais “popular” é atualmente o general Pazuello, o inacreditável Ministro interino da Saúde, que povoou o ministério com oficiais do Exército e revelou-se um verdadeiro ajudante de ordens de Bolsonaro e fervoroso partidário da cloroquina, em plena pandemia da COVID-19.
Num terceiro círculo, acham-se três mil oficiais das três forças, a grande maioria do Exército, boa parte deles da ativa, espalhados por todos os ministérios. Desses, em geral, pouco se ouve, pois o monopólio do barulho é do próprio presidente e dos três ministros por acidente: Araújo, no Itamaraty, Damares, da Mulher e Direitos Humanos (!) e o agora fugitivo Weintraub, aquele que destruiu o MEC e quis prender os “onze vagabundos do STF”.
Por fim, fora do governo, acham-se os oficiais da ativa, dos quais não se se espera que se manifestem politicamente, mas que, a despeito disso, às vezes o fazem, em seus perfis nas redes sociais, como mostram as colunas de Marcelo Godoy no Estado de S. Paulo.
Pertencentes a uma organização baseada na disciplina e na hierarquia, os oficiais da ativa falam apenas por intermédio do comandante da força, que sempre ouve o Alto Comando. No Brasil atual, o único chefe cujo nome é relativamente conhecido é obviamente o do Exército. Mas o general Pujol não fala e não tem perfil nas redes sociais; o que é bom, mas alimenta constantes especulações sobre o que pensa a esfinge militar.
Quanto à segunda pergunta, as respostas são mais polêmicas. Alguns estudiosos do tema defendem que se trata de um governo militar, mas para a maioria deles o lugar ocupado pela figura e a personalidade de Bolsonaro e seu círculo íntimo no arranjo de poder inaugurado em janeiro de 2019 não permitem ver o regime como militar; embora os fardados sejam um dos esteios do governo e o mais visível.
Além disso, o papel residual do Congresso, o recente empenho do Supremo Tribunal Federal em demarcar seu terreno diante das agressões do presidente e as liberdades de imprensa, de organização e de manifestação impedem-nos de ver o regime como ditatorial. Deve-se acrescentar que, a visibilidade extrema dos altos oficiais do Exército no governo parece ter fugido dos planos deles próprios, que provavelmente teriam preferido um papel diferente, atuando nos bastidores, com capacidade de ajudar Bolsonaro e não ser tão Bolsonaro.
Mais que tudo, fugiu ao projeto inicial a exposição de generais a agressões de um personagem, como o filósofo Olavo de Carvalho, e dos próprios filhos do presidente, responsáveis pelo afastamento do mais provável candidato a iminência parda do governo, o general Santos Cruz, defenestrado em junho de 2019. Isso sem falar do próprio presidente, que não perde oportunidade de colocar seus fiéis generais em saias justas.
A terceira pergunta é a sequência lógica das duas primeiras. Diante da frequência com que o capitão alude à possibilidade de poder contar com as Forças Armadas, e aqui se fala da instituição, não de pessoas, para superar os “obstáculos” que os outros poderes tentam colocar aos seus desmandos, a questão é natural. E de tão frequente, virou uma espécie de mantra da política nacional. A ela, os generais mais conhecidos, fora e dentro do governo, respondem indignados, em uníssono, que a hipótese de intervenção militar é absurda.
Mas é inquietante constatar que, ao mesmo tempo, falam que o Judiciário e o Legislativo não deixam o presidente governar e não dizem claramente que é impossível interpretar o artigo 142 da Constituição Federal como base para uma eventual intervenção moderadora das FFAA, versão contrariada por vários ministros do STF e em manifesto de centenas de juristas. Para tanto, recorrem às opiniões “abalizadas” de apenas dois juristas.
É fácil perceber que os generais da reserva, que falam abertamente à imprensa, tergiversam quando os jornalistas perguntam se o presidente não é o maior responsável pela preocupação de todos com essa possibilidade. E se, ao descer com frequência à praça pública, como agitador, que nunca deixou de ser, ele não estaria mantendo acesa a brasa da quebra da ordem constitucional entre seus apoiadores paisanos e fardados, incluindo aí as polícias e as milícias.
As duas últimas questões podem ser agrupadas numa única. Sabe-se à exaustão o que pensam os generais do palácio, e que não é coisa boa. Das entrevistas frequentes de duas figuras importantes, os generais Santos Cruz e Etchegoyen, pode-se extrair mais sofismas que críticas, embora o primeiro tenha avançado nas ressalvas ao governo. Mas nenhum dos dois parece disposto a fazer um mea culpa por ter apoiado a ascensão de um dos piores presidentes do mundo atual, com tudo o que isso significa internamente, em termos de destruição, e para a imagem externa e o lugar do Brasil no mundo.
Quanto a possíveis divisões no campo militar, até aqui, é difícil defender, com muita ênfase, que elas existam. Aparentemente, há mais identidade com as ideias do capitão do que com seu sutil estilo de governo. E ainda é forte a ideia de que ele foi a melhor opção em outubro de 2018.
Obviamente, se as investigações sobre os filhos do presidente chegarem a fortes evidências de corrupção, isso pode mudar. Mas é bom lembrar que os generais não parecem dispostos a pedir o boné, ou melhor o quepe, para simplesmente voltar ao sadio anonimato dos quartéis, deixando milhares de empregos e posições no poder e, na visão deles, deixando também o caminho aberto para que “o outro lado” volte à presidência.
Feitas as contas, até aqui, aplica-se aos militares, e à sua posição sobre Bolsonaro, a famosa frase dos partidários da esquerda sobre o último governo da Espanha republicana: “É um governo de merda, mas é nosso governo”. Mas, convenhamos, não há comparação entre os dois casos.