Demorou mais de um ano e meio, mas finalmente o governo Bolsonaro parece ter aprendido o que fazer para não ter mais dor de cabeça com os dados de desmatamento da Amazônia publicados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não, bobinho, ele não vai resolver o problema do desmatamento. Vai destroçar o instituto.
É um movimento mais sutil e insidioso do que simplesmente interferir no monitoramento por satélite ou censurar os dados. E mais eficiente também. Veja como o Ibama, a temida “indústria da multa”, foi solapado em um ano e meio de passagem da boiada. O Inpe é o novo Ibama. Explico.
Os dados do Inpe vêm sendo atacados pelo bolsonarismo desde antes da posse. Já em dezembro de 2018, em sua primeira entrevista ao ser nomeado, o ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro dizia que o monitoramento do instituto era falho porque supostamente não permitiria distinguir desmate legal de ilegal. Depois, já empossado, alegou que o sistema Deter, do Inpe, não conseguia orientar fiscalização (tomou um desmentido no ato, já que o sistema foi feito para isso).
Deter do B
A partir de maio de 2019, quando o desmatamento previsivelmente começou a explodir – como resultado de atos e discursos do governo –, os ataques, também previsivelmente, recrudesceram. Do Presidente da República ao general Heleno, passando pela “moderada” (sic) ministra Tereza Cristina, não faltaram acusações de manipulação dos dados do Deter, que detecta a destruição da floresta em tempo real.
Em julho de 2019, após o Deter registrar uma alta de 91% nas derrubadas no mês anterior, o ministro da boiada fez uma viagem a Campinas e voltou de lá com um powerpoint que supostamente mostrava falhas fatais no sistema do Inpe. (A equipe do Inpe pediu para ver o estudo que embasava a análise; está esperando até hoje.) A solução proposta seria contratar, sem licitação, um sistema que seria um “bedel” do Deter: usaria caras imagens de satélite de alta resolução para “validar” os alertas do instituto.
Naquele mesmo julho, Bolsonaro acusou o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, de estar “a serviço de alguma ONG”, divulgando dados “mentirosos”. Galvão sentiu o cheiro da fritura e reagiu no mesmo tom. Foi demitido em 2 de agosto, em meio a um escândalo internacional que pôs o Inpe nos holofotes e acabou salvando o monitoramento do instituto de censura ou intervenção. A ideia de um “Deter do B” foi para a geladeira.
Passo-a-passo do desmonte
O episódio cumpriu uma escrita de 30 anos que pode ser chamada de “maldição do Inpe”: todas as vezes que presidentes da República tentaram intervir nos dados de Amazônia a realidade se impôs e a tentativa naufragou. Em 2008, por exemplo, Lula quis tirar o monitoramento do Inpe e entregá-lo ao Núcleo de Monitoramento Ambiental e de Recursos Naturais por Satélite da Embrapa, atualmente denominado Embrapa Territorial, depois que o governo de Mato Grosso apontou (erroneamente) problemas no Deter. Não conseguiu.
Eventos recentes, porém, indicam que até Jair Bolsonaro é capaz de aprendizado. Baixar, manu militari, a censura pura e simples aos sistemas Prodes e Deter não pegaria bem num momento em que o general Mourão (ele próprio um crítico do Inpe) gasta seu latim tentando convencer investidores a não debandar do Brasil. Seria inútil também, dado que existe mais de uma dezena de sistemas por aí monitorando desmatamento – veja os dados de Covid, cuja censura pelo quartel da Saúde foi logo driblada pela imprensa, que passou a computar e publicar dados próprios. Afinal, para que intervir no varejo se você pode desossar a instituição?
O modo de fazer isso vem sendo aperfeiçoado pelo governo. O primeiro passo é a difamação do órgão que se quer desmontar. Em geral chama-se de “ideológico”, “antro de comunistas”, “inimigo do Brasil”. Quando essa mensagem é fixada na milícia digital, passa-se à fase seguinte, a da troca de comando por um cumpridor de ordens do regime, seguida de mudanças na burocracia que desmobilizam os servidores, corte orçamentário e por fim entrega de atribuições da instituição vítima às Forças Armadas.
Boicotes, cortes, perseguições e demissões
Foi assim com o Ibama. Alvejado por Bolsonaro desde a campanha, o instituto sofreu questionamentos pelo ministro do Meio Ambiente na primeira semana de governo. Foi entregue a um atropelador de pareceres técnicos, teve seu comando afetado pela vacância deliberada de quase 20 superintendências, sofreu boicotes, cortes orçamentários, perseguições e demissões. Até que viu em maio deste ano sua função precípua, a de fiscalizar crimes ambientais, delegada ao Exército na Amazônia. Hoje os criminosos na floresta sabem que não precisam mais temer o Ibama. Como resultado, o desmatamento dobrou após o início das ações do Exército. O número de queimadas cresceu 20% em junho, 17% em julho e em agosto está no mesmo nível globalmente escandaloso de agosto de 2019.
O Inpe já passou pela fase do achincalhamento e agora está nas seguintes. Em julho, seu diretor-interino, o coronel da Aeronáutica Darcton Damião, exonerou sem aviso prévio a coordenadora de Observação da Terra (OBT) do instituto, Lubia Vinhas, à qual estava subordinado o Programa Amazônia, que cuida do Prodes e do Deter. Alegou que o movimento se devia à “reestruturação” do Inpe, que durante mais de um ano só existiu na cabeça de Damião. A nova estrutura do instituto retira poderes e autonomia da OBT, que passará a ser subordinada a uma outra coordenação – perdendo, por exemplo, o acesso ao diretor, algo crucial para a negociação de verbas.
Em agosto veio nova pancada: o orçamento proposto pela Agência Espacial Brasileira para o Inpe em 2021 foi reduzido à metade, e a verba para pesquisas foi zerada. A proposta orçamentária também corta em 15% os recursos vindos da administração direta do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, ao qual o Inpe é vinculado) para monitoramento da cobertura do solo e de queimadas.
Satélite ‘sem viés ideológico’
Paralelamente à desidratação do Inpe, busca-se fortalecer órgãos militares para duplicar funções do instituto. Como revelaram Oeco e o Uol no último dia 21, o Censipam, órgão do Ministério da Defesa, pretende gastar R$ 145 milhões sem licitação (o equivalente a 50 anos de verbas do Programa Amazônia do Inpe) para comprar microssatélites da constelação finlandesa ICEYE para… monitorar a Amazônia. A iniciativa toda é maluca, seja por seu grau de transparência (zero), seja por seu orçamento, seja pelo próprio objeto: afinal, trata-se do mesmo tipo de espaçonave – chamada radar de abertura sintética – que o Censipam se comprometeu a adquirir com um projeto de R$ 64 milhões com o Fundo Amazônia. E para a mesma função.
Acrescentando ao cheiro de peixe, forja-se uma aliança entre o Censipam e a Embrapa Territorial, em Campinas – aquela que no governo Lula tentou tirar o monitoramento do Inpe. O diretor desta, Evaristo de Miranda, coordenou a transição de governo Bolsonaro na área ambiental e tem municiado o presidente e o vice com informações que contradizem o Inpe, como a de que as queimadas na Amazônia não estão relacionadas a desmatamento. O Censipam iniciou neste ano um projeto com a Embrapa Territorial para “qualificar e quantificar” o desmatamento de forma a “orientar novas políticas públicas e privadas na região amazônica”.
É incerto se a tal constelação de microssatélites integra o acordo com a Embrapa, mas ao que enfim parece vem aí o “Deter do B”, o satélite “sem viés ideológico” tão sonhado por Jair Bolsonaro. Não será preciso nem produzir dados corretos: com metodologias diferentes e imagens de resolução distinta, o governo poderá alegar “fortes imprecisões” no Deter e botar qualquer número na praça. Basta gritar alto o bastante para o ruído contaminar todo o debate público sobre monitoramento – a imprensa, por exemplo, se verá na obrigação de cobrir o “outro lado” dos dados dos militares, aumentando a confusão na opinião pública. No fim, perde-se a referência do Deter e do Prodes como fontes oficiais de informação sobre desmatamento.
O problema é que os donos do dinheiro no exterior e os nossos parceiros comerciais dificilmente engolirão a patranha.
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