Em 2022, o astronauta, que estava ocupando o posto de Ministro do MCTI, visitou São José dos Campos e, questionado pela imprensa sobre a falta de recursos para o INPE, disparou: “Isso sempre teve recurso; acho que o INPE deu uma moscada, era só uma questão de preencher formulário, pô.” E acrescentou: “Ô Clezio, esqueceu como preenche formulário, pô? Pega esse negócio e preenche essa coisa aí!” Linguajar de alto nível? Certamente não, pois é mais parecido com conversa de botequim ou estrebaria, típica daquele tempo tenebroso que vivemos.
O presidente mudou, o astronauta virou senador, mas o diretor do INPE continua o mesmo. E continua comendo moscas. Outro prato de Musca domestica Linnaeus deglutido pelo diretor do INPE foi servido recentemente, com o seu imobilismo durante a tramitação nas duas casas do Congresso Nacional de Projeto de Lei que impacta o setor espacial e, por conseguinte, o futuro do INPE.
Até quando comereis moscas, ô Clezio??? O edital para desencadear o processo sucessório no INPE já está na mesa da Ministra Luciana.
Em 2022, quando já eram evidentes os sinais de que o Brasil não suportaria mais um mandato de desmandos, foi discutida no Estado-Maior da Aeronáutica uma “Proposta da Lei de Atividades Espaciais”, que contou com a participação de representantes do MCTI, da AEB, e de uma penca de órgãos militares, incluindo o Gabinete de Segurança Institucional – GSI.
Naquele mesmo ano o Deputado Pedro Lucas Fernandes, do União Brasil do Maranhão, apresentou um Projeto de Lei, o PL 1.006/22, com o objetivo de instituir a Lei Geral das Atividades Espaciais e alterar a Lei nº 8.854, de 10 de fevereiro de 1994, a lei que criou a Agência Espacial Brasileira.
Especialistas do setor espacial, consultados pelo SindCT, consideram que a proposta elaborada pelo estamento militar, sempre muito próximo ao astronauta, é, em tudo, semelhante ao PL 1.006/22, e vice-versa.
O PL 1.006/22 tramitou na Câmara dos Deputados tendo como relator o deputado Cleber Verde, do MDB do Maranhão, e foi aprovado sem maiores discussões ou audiências públicas.
Em 10 de maio de 2024 ele deu entrada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, tendo sido designado relator, para a surpresa de ninguém, o astronauta, que foi quem deu o chute inicial. Em linguagem futebolística, o astronauta bateu escanteio e cabeceou para fazer o gol. Novamente o projeto tramitou em regime de urgência, e foi enviado ao Plenário do Senado, que o aprovou em 10 de julho de 2024. Agora, aguarda a sanção presidencial.
O PL aprovado contém 49 artigos, e pode ser consultado por meio do link: TEXTO FINAL (senado.leg.br). Recomendamos, a todos que têm algum interesse, ou preocupação, com os rumos de nosso programa espacial, que o leiam e formem seu juízo. De nossa parte, lemos, ouvimos membros relevantes da comunidade do setor espacial e, como eles, não gostamos. Não pelo fato de ser seu relator alguém de um campo político oposto. Nada disso. É que a proposta é ruim. Ponto final.
Não cabe aqui nos alongarmos analisando artigo por artigo. Mas vai um spoiler: os artigos 4º e 5º, que nos parecem fundamentais, tratam da diferenciação das atividades espaciais de defesa das atividades civis, mas o fazem de forma muito peculiar. Como não poderia deixar de ser, considerando a aparente origem da proposta em um órgão militar, em lugar de enquadrar de forma específica as legítimas atividades de defesa, tornando as atividades civis espaciais a regra, o PL começa definindo as de defesa a partir do que entendem serem questões de segurança nacional, relegando as atividades civis para o que restar.
O problema é que o fazem a partir de uma referência genérica à Constituição e a uma Lei Complementar (a Lei Complementar Nº 97 de 9 de junho de 1999), e dão ao Comando da Aeronáutica o poder de decidir aquilo que será, ou não, de sua alçada. Resulta que, sem muito esforço, a partir desse instrumento legal, será possível classificar a quase totalidade das atividades espaciais como de defesa, ou ao menos de interesse dela. Por fim, na forma de parágrafo único do mesmo artigo 4º, fica estabelecido que as atividades civis poderão ser “acompanhadas” pela autoridade espacial de defesa, se esta julgar (por quem, cara-pálida?) que tais atividades podem “comprometer a segurança ou a defesa nacional”.
Em outros tempos isso tinha nome: TUTELA! Com este PL, passaremos a ter um programa espacial com a fachada civil, mas com o “acompanhamento” dos militares. O governo mudou, o Ministro mudou, mas o setor espacial, caso o PL 1.006/22 seja sancionado sem vetos, voltará para o controle militar, situação que foi superada com o fim da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais – COBAE e a criação da Agência Espacial Brasileira – AEB, em 1994, há 30 anos.
Segundo máxima de Georges Clemenceau (1841-1925), estadista francês que serviu como primeiro-ministro durante a I Guerra Mundial, “A guerra é uma coisa demasiadamente grave para ser confiada aos militares”. Achamos relevante lembrá-la, pois o PL em questão deixa claro que organizações civis são inaptas, ou incapazes de lidar com temas que afetem a segurança nacional. Acreditamos que esta subestimação é injusta, e não faz bem ao país. Lembremos que a criação do Ministério da Defesa, cujo titular deveria ser sempre um civil, é a prova de que eles são capazes de lidar com o assunto, sem ter que viver em permanente subordinação a organizações militares.
Finalmente, as consequências dessa tutela militar disfarçada, imposta pelo Projeto de Lei, não ficarão restritas apenas à AEB, órgão legalmente responsável pela condução do programa espacial brasileiro. Na medida em que órgãos executores do Programa Espacial Brasileiro – PEB, tais como o INPE, estiverem envolvidos em projetos que deflagrem processos de exame, ou de consultas, junto ao Comando da Aeronáutica, suas atividades também poderão ser impactadas, ou até mesmo cerceadas, a depender do entendimento daquela instância militar. A título de exemplo, devem também ser mencionados os artigos 6º, referente a aplicações em sensoriamento remoto e 7º, para a vertente de clima espacial da consciência situacional espacial.
Explicando melhor, o artigo 6º coloca sob passível controle do Ministério da Defesa a distribuição dos dados espaciais sobre “infraestruturas críticas e áreas sensíveis para a segurança nacional”, sem impor qualquer limite para o que se entende como crítico ou sensível, pois sua definição fica para um futuro regulamento. Um dos orgulhos do INPE, como organização pública de C&T, é seu sistema de distribuição gratuita de imagens de sensoriamento remoto. Caso este Projeto de Lei seja aprovado como está, esta atividade terá, agora, o Ministério da Defesa como órgão supervisor. Pergunta-se: depois de ter distribuído milhões de imagens ao longo de décadas, teria o INPE algum dia colocado a segurança nacional em risco?
Na mesma linha, o artigo 7º atribui à autoridade espacial de defesa a última palavra para a instalação de sensores de monitoramento em temas associados à consciência situacional espacial. Aí estão inclusos, por definição do próprio PL, o monitoramento de eventos climáticos espaciais e o rastreamento de detritos espaciais e corpos celestes. O assunto dos eventos climáticos espaciais é tema de grande relevância científica e tecnológica no qual o INPE também se destaca. Pergunta-se: colocar tal atividade sob controle, mesmo que parcial, de uma autoridade militar traria algum benefício ao país?
É necessário reconhecer a importância de um instrumento legal que regule e harmonize as atividades espaciais nacionais, particularmente as de natureza privada. No entanto, consideramos que o PL 1.006/22 não alcançará tal objetivo. Pelo contrário, entendemos que ele trará incertezas e provocará indesejáveis ingerências e divergências entre os órgãos governamentais responsáveis por sua execução.
Também é necessário reconhecer que o PL 1.006/22 foi habilmente conduzido, tendo tramitado ou, se nos permitem a analogia, cruzado o espaço aéreo das duas casas congressuais abaixo do radar, mas não de forma oculta, ou sigilosa. Sua existência e conteúdo sempre foram do conhecimento dos tomadores de decisão do programa espacial brasileiro. A falta de qualquer reparo, que tenha vindo a público, particularmente da parte dos órgãos civis, indica, muito provavelmente, que eles concordam, ou que tenha havido algum tipo de “concertação” em favor da proposta. Se houve tal acordo, é fundamental que isto seja dito, pois o PL trará alterações importantes na governança do programa espacial e em seus eixos de tomada de decisão.
Mas, mesmo que outros órgãos não tenham se manifestado, seria importante que o INPE o fizesse, seja pela sua relevância e contribuições como ICT, seja por ter atravessado todas as fases do programa espacial desde sua criação, e, principalmente, por ter sofrido intervenção durante o governo anterior, que levou à exoneração de seu então diretor. Interessante observar que, na origem desse episódio, estava exatamente a divulgação de informações, no caso as estatísticas do desmatamento na região amazônica, dados que desagradaram o então presidente da república. Estaríamos caminhando para a institucionalização de novos mecanismos de vedação e censura, agora em nome da segurança nacional? Relembrando Raul Seixas, seria este PL uma “mosca na sopa do programa espacial”?
A direção do INPE e seus assessores deveriam ter feito algo, já que estão na estrutura oficial. Ou fizeram, e fazem, o mesmo jogo que o ex-ministro de C&T, e turista espacial, que se empenhou em vender sua imagem e travesseiros?