Por Renata Belzunces
Desde 2016 o Brasil vive as agruras de reformas polêmicas: Reforma Trabalhista (2017), Reforma da Previdência (2019) e agora a Reforma Administrativa (PEC 32/2020). Esta última imediatamente mobilizou a atenção dos servidores públicos de todas as esferas, que rapidamente traduziram a iniciativa como um ataque ao serviço público por meio de mudanças que afetam os servidores atuais e futuros.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 32/2020) foi encaminhada, pelo Ministro Paulo Guedes ao Congresso Nacional no dia 2 de setembro de 2020, tendo como título “Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”. Os temas tratados são: estabilidade, formas de contração, criação de cargos típicos de Estado, parcerias de compartilhamento de pessoal e estrutura com o setor privado, avaliação de desempenho, possibilidade de redução de jornada e salários, entre outros. A exposição de motivos defendeu o texto amparando-se em ideias como “a percepção do cidadão corroborada por indicadores diversos, é a de que o Estado custa muito, mas entrega pouco” e o “gasto público é engessado em categorias como folha de pagamento e previdência social”. Os indicadores diversos nunca foram apresentados e a afirmação sobre engessamento dos gastos também não precisou ser comprovada, a não ser que se entenda como engessamento a obrigação de pagar salários. O texto que acompanhou a PEC fez um “catado” de lugares-comuns e preconceitos sobre o serviço público para defender a modernização, transparência, eficiência, eficácia e efetividade a partir das propostas apresentadas.
O desfecho dessa reforma ainda não é conhecido, pertence ao Congresso Nacional onde está depositado o relatório da Comissão Especial que analisou, modificou e, por maioria simples, derrotou as reinvindicações dos servidores, sendo a mais ampla delas o próprio cancelamento da PEC. A motivação (real) do poder executivo, o projeto original e o relatório da Comissão Especial formam um quadro-síntese acerca da visão de Estado do atual governo, da correlação de forças no legislativo e das tarefas de salvar o Estado, com “E” maiúsculo, daqueles que supostamente deveriam preservá-lo para o bem maior da população.
Um dos temas polêmicos e reveladores foi a proposta de criação de cargos típicos de Estado a serem estabelecidos em lei complementar federal. Na proposta original, os servidores nesses cargos gozam de maior proteção sendo os únicos a fazer jus à estabilidade e à proteção de seus vencimentos contra eventuais reduções.
Na Comissão Especial definiu-se os cargos típicos de Estado, evitando assim que fossem estabelecidos posteriormente e ficassem fora do ordenamento constitucional. Na visão da Comissão os cargos típicos de Estado são aqueles de funções finalísticas e que afetam diretamente a segurança pública, a representação diplomática, a inteligência de Estado, a gestão governamental, a advocacia pública, a defensoria pública, a elaboração orçamentária, o processo judicial e legislativo, a atuação institucional do Ministério Público, a manutenção da ordem tributária e financeira ou o exercício de atividades de regulação, de fiscalização e de controle.
Ao fim e ao cabo, o resultado é revelador daquilo que o governo atual e a maioria dos legisladores consideram atividades relevantes a serem exercidas pelo Estado, sendo atribuídas às demais atividades garantias e proteção inferiores. Não é propriamente uma novidade, por exemplo, que cuidar dos impostos é prerrogativa exclusiva do Estado enquanto educação pode ser exercida também pelo setor privado, como já ocorre. No entanto, é novidade que os servidores da educação, saúde, ciência & tecnologia e outros possam passar à categoria oficial de servidores de segunda classe, sem estabilidade e com maior precarização, como propôs o poder executivo. O sentido da proposta não é sequer a divisão dos servidores em classes, mas sim o extermínio dos demais cargos, acompanhados das atividades que desempenham seus titulares. Na mira estão a saúde e a educação com 38,8% do total dos servidores; afinal esse governo nunca escondeu que prefere fornecer tíquetes ou vouchers para a população comprar esses serviços na rede privada que fortalecer a participação do Estado.
A pressão dos servidores conseguiu uma vitória parcial na Comissão que alterou o texto original para manter a estabilidade geral dos servidores. Mesmo assim não há muito a se comemorar, pois a nova redação ampliou as possibilidades de demissão e abriu, ainda mais, as portas para a contratação de trabalhadores temporários, sem concurso, sem estabilidade e sem FGTS. Se o Congresso Nacional aprovar esse conteúdo, significa, na prática, a implementação das prerrogativas de estabilidade e proteção dos salários apenas aos servidores em cargos “típicos de Estado” já que os demais são temporários.
Para as instituições das carreiras de ciência e tecnologia há outro tema de especial interesse. Trata-se da possibilidade de “firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Esse é o caput do artigo 37-A que foi objeto de intenso debate, chegou a ser retirado do relatório preliminar, porém reapareceu no texto final com a versão original. Não há muita clareza sobre os potenciais ganhos para a administração pública e para a população em estabelecer tais parcerias no espírito dessa Reforma. Por outro lado, parece presidir esse artigo a sanha de agradar a iniciativa privada e fazer algum dinheiro ou diminuir gastos, permitindo a utilização do patrimônio e servidores sem estabelecimento de qualquer contrapartida.
Para facilitar a aprovação na Comissão e desmobilizar o debate público, seus defensores repetiram o mantra de que as mudanças não afetariam os servidores atuais. No entanto isso foi percebido pelos servidores como bastante errôneo a partir da constatação de que algumas mudanças afetam os servidores ativos e, principalmente, que ninguém está totalmente protegido em meio a uma estrutura em desmoronamento.
Agora a bola está com o Congresso Nacional que poderá votar o texto que:
* permite a contratação de servidores temporários (limite máximo de 10 anos), mediante processo seletivo simplificado, ou em regime de urgência decorrente de calamidade, paralisação de atividades essenciais, incolumidade pública;
* passa a permitir normatização, via medida provisória, de normas gerais sobre contratação por tempo determinado em regime de direito administrativo e sobre criação e extinção de cargos públicos, concursos, critérios de seleção e requisitos para cargos em comissão, estruturação de carreiras, políticas remuneratórias;
* permite o compartilhamento de estrutura física e de pessoal com o setor privado, com regulamentação a ser definida posteriormente;
* possibilita a redução transitória de jornada de trabalho em até 25% com correspondente redução da remuneração, quando houver extrapolação dos limites de gasto para esse item definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com exceção dos cargos típicos de Estado;
* cria a categoria de “cargos exclusivos de estado” com tratamento diferenciado para: segurança pública; manutenção da ordem tributária e financeira; regulação e fiscalização da gestão governamental; inteligência de Estado; serviço exterior, advocacia pública, defensoria pública e para a atuação institucional do poder Legislativo e Judiciário, incluindo as funções de oficial de justiça e do Ministério Público.
* define que pensões por morte de servidores da segurança pública terão regras próprias;
* aumenta para 5 (cinco) as situações de demissão de servidor concursado: extinção do cargo, extrapolação da Lei de Responsabilidade Fiscal, processo administrativo, avaliação de desempenho e processo judicial;
* traz possibilidade de definir requisitos e valores de parcelas indenizatórias que poderão não ser computadas no teto remuneratório.
A verdadeira motivação para a Reforma Administrativa não tem a ver com modernizar e aumentar a eficácia o Estado, é sim de origem fiscal, ou seja, tem como objetivo diminuir os gastos com as estruturas e os servidores requeridos para o atual desenho do Estado. O principal resultado desejado é o aumento da destinação de fundos públicos para o setor privado, por meio da garantia ilimitada de recursos arrecadados pela tributação indo parar nas vorazes mãos dos credores da dívida pública, e a liberação de novas oportunidades de negócios para o setor privado em serviços como saúde e educação com a “voucherização” dos direitos básicos.
Não há engano, não é uma mera mudança nas relações de trabalho dos servidores, é uma reforma de Estado que redesenha o destino da arrecadação, suas prioridades e suas funções. A primeira vítima é o servidor público e a maior vítima é a população mais pobre e mais dependente dos serviços que garantem ainda alguns direitos básicos.
Votaram contra os servidores na Comissão Especial:
- Alceu Moreira (MDB-RS)
- Alex Manente (CIDADANIA-SP)
- Aroldo Martins (REP-PR)
- Bosco Costa (PL-SE)
- Darci de Matos (PSD-SC)
- EuclydesPettersen (PSC-MG)
- Evair de Melo (PP-ES)
- Fernando Monteiro (PP-PE)
- Gastão Vieira (PROS-MA)
- Giovani Cherini (PL-RS)
- Henrique Paraíso (REP-SP)
- Lucas Gonzalez (NOVO-MG)
- Marcelo Moraes (PTB-RS)
- Mauro Lopes (MDB-MG)
- Misael Varella (PSD-MG)
- Paulo Ganime (NOVO-RJ)
- Ricardo Barros (PP-PR)
- Roberto Alves (REPUBLICANOS-SP)
- Samuel Moreira (PSDB-SP)
- Sergio Souza (MDB-PR)
- Stephanes Junior (PSD-PR)
- Tiago Mitraud (NOVO-MG)
Votaram a favor dos servidores na Comissão Especial:
- Alcides Rodrigues (PATRIOTA-GO)
- Alencar S. Braga (PT-SP)
- Alice Portugal (PCdoB-BA)
- André Figueiredo (PDT-CE)
- Camilo Capiberibe (PSB-AP)
- Gervásio Maia (PSB-PB)
- Israel Batista (PV-DF)
- Ivan Valente (PSOL-SP)
- Joenia Wapichana (REDE-RR)
- Leo de Brito (PT-AC)
- Léo Moraes (PODE-RO)
- Márcio Labre (PSL-RJ)
- Milton Coelho (PSB-PE)
- Paulo Pereira (SDD-SP)
- Rogério Correia (PT-MG)
- Rui Falcão (PT-SP)
- Sebastião Oliveira (AVANTE-PE)
- Wolney Queiroz (PDT-PE)