Há alguns anos conheci um bairro enorme em São José dos Campos, com população estimada de 9 mil moradores – maior que a de muitas cidades do interior do Brasil – nos seus 8 anos de existência. Me disseram que as pessoas dali seriam retiradas de suas casas por terem invadido o terreno.
Visitei o local.
Me lembrou um pouco o lugar onde cresci, ruas de terra, muitas crianças brincando na rua, vizinhos que se conheciam pelo nome.
Havia também uma grande praça na frente de uma igreja, com um parquinho e pequenos comércios espalhados pelo bairro, como mercearias e padaria. Um típico bairro simples.
Estive lá várias vezes para conversar com os moradores e líderes da “ocupação”.
Era o Pinheirinho!
Em 2011, às vésperas das festividades de final de ano, foi expedida pela justiça uma ordem para a reintegração de posse. Começou então o movimento Resiste Pinheirinho, que recebeu apoio, por meio das redes sociais, de pessoas de todo o país, além de sindicatos, movimentos sociais e políticos.
Antes de abrigar todos esses moradores, a área do Pinheirinho estava abandonada havia mais de 30 anos. As terras pertenciam a um casal de alemães que, na década de 1960, foi assassinado. O casal não deixou herdeiros. Estranhamente, em 9 de setembro de 1981, a propriedade apareceu em nome da empresa falida Selecta, de propriedade do especulador das bolsas de valores Naji Nahas. Falida em 1991, a Selecta nunca teve funcionários e não tinha dívida trabalhista. Só havia um credor, a Prefeitura Municipal de São José dos Campos, a quem a empresa devia R$ 1,5 milhão referente a IPTU. A Prefeitura Municipal, porém, não teve interesse em tomar posse do terreno, como pagamento da dívida, e fazer assim a regularização do bairro.
Com o passar do tempo e com a valorização do terreno, foi-se desenhando a tragédia de janeiro de 2012.
Um helicóptero sobrevoou a área despejando panfletos que solicitavam a desocupação imediata do terreno.
Na noite anterior à desocupação agendada, vários jornalistas estavam dentro da ocupação. Eu era uma delas. Aquilo foi algo que me impressionou bastante. Em todas as desocupações, das quais tive conhecimento, a imprensa entrava depois da polícia. Nessa, a imprensa estava com os moradores.
Fazia frio e chovia. Vi alguns, poucos, moradores deixando o local, carregando o que podiam.
Por volta da meia noite, alguém passou um cadeado no portão e gritou: “ninguém mais entra, ninguém mais sai”. Nessa hora, uma jornalista de TV entrou em pânico. Ligou para seu chefe e deu um jeito de sair de lá.
Eu também estava com medo. Muito medo. Não sabia o que poderia acontecer no confronto com a polícia.
Logo depois, duas senhorinhas chegaram, cada uma carregando duas garrafas de café. Uma delas me chamou: “filha, vem tomar um café pra ficar quentinha.” Obedeci.
E, na conversa, perguntei: “a senhora não está com medo?”
E ela me respondeu: “tudo que eu tenho está aqui. Se eu não lutar, quem vai lutar por mim?”
Nesse momento senti vergonha de ter medo.
Alguns políticos estavam ajudando o Pinheirinho e, naquela noite, com as tropas já a caminho do bairro, a reintegração de posse foi suspensa.
A noite de tensão virou uma noite de festa. As pessoas foram para a avenida principal, em frente ao bairro, e comemoraram, enquanto o dia amanhecia.
Voltaram, então, à vida normal, com a tranquilidade de uma liminar que impedia a desocupação.
Pouco tempo depois, às 5h da manhã do dia 22 de janeiro de 2012, um domingo, 1750 homens da Polícia Militar, Tropa de Choque, Guarda Civil Metropolitana e ROTA chegaram ao Pinheirinho.
A região se transformou em um cenário de guerra. O morador da primeira casa a ser desocupada, uma das casas mais simples do bairro, e que tinha mais de 70 anos, apanhou da polícia, ficou internado mas não resistiu aos ferimentos.
Um jovem levou um tiro nas costas. Uma senhora com Alzheimer desapareceu. Pessoas se perderam da família. Moradores de bairros vizinhos entraram em confronto com a polícia, tentando impedir o inevitável.
Ao final do dia, não havia mais nenhum morador no bairro.
As pessoas foram encaminhadas para alojamentos provisórios, nas escolas dos bairros vizinhos.
Ficaram nesses locais, em péssimas condições, por pouco mais de um mês. Em uma das escolas, pombos na quadra sujavam o locam onde dormiam. Numa outra, sem espaço suficiente para todos, moradores improvisaram barracas num corredor, que enchia de água quando chovia.
Ficaram presos. Não podiam sair do local sem autorização.
A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo pediu voluntários para colher depoimentos dos moradores, para averiguar se havia tido o uso excessivo de força policial.
Fui uma das voluntárias. Ouvi histórias que, até hoje, me tiram o sono. Em uma das casas desocupadas, a polícia chegou no horário do almoço. As crianças estavam comendo e, segundo a mãe, o policial jogou os pratos de comida no chão e colocou todos para fora.
Um pai divorciado, recriou o filme “A vida é bela”, falando pro filho que a polícia estava ali para salvá-los dos homens maus.
Cada vez que eu entrava na escola, pessoas vinham falar comigo, me pedindo algum tipo de ajuda.
Depois de serem cadastradas pela Prefeitura, aos poucos, as famílias começaram a desocupar os alojamentos. Passaram a receber um auxílio chamado “aluguel social”.
Puderam recomeçar em outro lugar, mas seus pertencentes estavam trancados no Pinheirinho.
Informaram que os moradores poderiam retirar seus objetos. Poucos conseguiram.
Demoliram, com as casas, brinquedos, material escolar, roupas, móveis, eletrodomésticos, alimentos e sonhos.
Visitei a área após a demolição e guardo, até hoje, um pedacinho da parede da casa que me abrigou na noite da desocupação suspensa.
Em 2014, a presidente Dilma Rousseff esteve em São José dos Campos para anunciar a construção do Residencial Pinheirinho dos Palmares. E, somente em 22 de dezembro de 2016, quase 5 anos após a desocupação traumática, os moradores receberam as chaves de suas novas casas.
Hoje, quando passo pela rodovia Carvalho Pinto, observo, sempre em silêncio, o Residencial Pinheirinho dos Palmares, recordando todo o sofrimento daquelas pessoas. E nenhuma delas sabe o quanto me enche de orgulho saber que resistiram.
Filme contará a história do Pinheirinho
Essa e muitas outras histórias se transformarão em filme. O documentário PINHEIRINHO DOS PALMARES resgatará a história do Pinheirinho desde a ocupação da área pelas primeiras famílias, recuperando o processo de organização e desenvolvimento daquele que, considerando o número de moradores e as atividades ali estabelecidas, era, na prática, um bairro. Quase uma pequena cidade.
Ao trazer a voz dos personagens principais dessa história, PINHEIRINHO DOS PALMARES permitirá enxergar a comunidade Pinheirinho como um corajoso contraponto à ação bárbara do Estado, como um exemplo de organização que, apesar das enormes dificuldades, persiste no processo de reconstrução e luta perante um Estado que, cada vez mais, protege os interesses da elite, em detrimento dos cidadãos e cidadãs que mais necessitam de políticas públicas que lhes garantam condições dignas de vida. Este Estado que, pautado pelo Capital, opera mantendo privilégios.
O projeto só pôde ser realizado por meio de financiamento coletivo, através da plataforma Catarse. Qualquer pessoa pode se cadastrar para contribuir com o projeto. Para participar, basta acessar o site: https://www.catarse.me/PinheirinhoDosPalmares
São 7 modalidades de financiamento, de acordo com o valor da contribuição. Cada modalidade dá direito a um benefício que vai desde sua participação em grupos de WhatsApp para acompanhar a evolução da produção até ter seu nome como financiador na abertura do filme.
Conheça quem está por trás desta produção:
Aline Sasahara – formada em Cinema pela ECA – USP e Mestra em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp, desde 1988 realiza documentários para entidades e movimentos sociais como MST, Marcha das Margaridas, Via Campesina, Marcha Mundial da Mulheres, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Justiça Global, TV Cultura, Vídeo na Aldeias, Fundação Perseu Abramo, TV dos Trabalhadores, Agência Carta Maior, Agência AIDS e Associação Via Cultura, bem como produções independentes.
Ministra oficinas de vídeo com telefone celular para jovens de bairros da periferia de São Paulo.
Celso Renato Maldos – Inicia seu trabalho como documentarista em 1982 junto aos movimentos sociais e entidades como: CIMI, CPT, UNI, Sindicato dos Metalúrgicos de SBC, FASE, IIEB, Museu do Índio/RJ, TVUnam/México, FAO/ONU, Unesco, CBJP/CNBB, FUNPROCOOP/El Salvador, CEAAL/Panamá, Escola de Cine de San Antonio de Los Baños/Cuba, TIE/Holanda, Playing For Change/EUA, Anistia Internacional/Inglaterra, Team Vídeo/Londres, CRP/SP, CFP/Brasília, SESC/SP, SESI/DF, FCCR/São José dos Campos, etc.
Livros publicados: Movimentos Sociais e Direitos Humanos–Memórias dos Anos 80. Presidente Lula–Operário Em Construção–Discursos da década de 1980.
Everton Rodrigues – Comunicador digital, construtor de redes pelo bem comum. Comunicador nascido e criado no primeiro assentamento do MST, Colônia Nova Esperança, Distrito de Bagé, Rio Grande do Sul. Colaborou na organização do Fórum Social Mundial. É integrante do Movimento Software Livre das patentes. Ativista pelo Software livre, Conhecimento Aberto e Comunicação Independente.
Lucas Lacaz Ruiz – Repórter fotográfico freelancer. Trabalhou em redações de jornais e sites na região do Vale do Paraíba e capital São Paulo. Faz 20 anos que vem trabalhando como freelancer com parcerias em agências de notícias e banco de imagens. Acompanha em especial temas de movimentos sociais e diversas questões da natureza e agricultura.