Foto: Lucas Lacaz Ruiz / A13
A edição dominical de 15 de outubro de 2022 do jornal Folha de São Paulo trouxe um longo artigo do jornalista Fabio Victor com transcrição adaptada de capítulo de sua obra “Poder Camuflado – Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro”, lançada neste mês de novembro. O capítulo, e por decorrência o artigo, tratam da relação entre o atual presidente da República e a viúva do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem o presidente devota especial admiração.
Como é sabido, o nome do Coronel Ustra está indissociavelmente ligado a episódios de graves violações de direitos humanos, todos, amplamente, relatados e documentados pela Comissão Nacional da Verdade. Consta no artigo que a ele foram atribuídas práticas de “detenção ilegal, tortura, execução, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver”. Interessados no assunto devem ler o artigo completo em <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/10/livro-revela-que-bolsonaro-convidou-viuva-de-ustra-para-compor-seu-governo.shtml>.
Esta introdução é o gancho para o assunto que tratarei. Por razões várias, coube a mim e minha irmã a responsabilidade por triar, guardar o que ainda teria valor, doar parte e descartar o restante de um acervo bibliográfico familiar acumulado ao longo de décadas, com milhares de itens entre livros, jornais, revistas, notas e documentos que remontam ao início do século passado. A maioria pertenceu a meu falecido pai, professor de história e geografia de colégios da rede estadual do Estado de São Paulo, assim como, a outros familiares também já falecidos.
Por coincidência, dentre inúmeros recortes de jornal examinados e descartados, restou uma pequena tira extraída da mesma Folha de São Paulo do dia 3 de junho de 1964, data da notícia, e de 4 de junho, data do exemplar do jornal, quando eram transcorridos aproximadamente dois meses do golpe militar que havia tomado o poder em 31 de março de 1964.
Neste dia, meu pai recortou e guardou a pequena tira do exemplar diário. Hoje, após 58 anos, amarelada e ressecada. A notícia curta é uma nota provavelmente das páginas policiais, o que em si não deveria atrair maior atenção. Abaixo, a transcrição exata do texto, mantendo a linguagem da época.
Juiz pede proteção para menor torturado
RIO, 3 (FOLHA) – O sr. Rui Otavio Domingues, juiz de Menores substituto, dirigiu carta ao general Costa e Silva, ministro da Guerra, solicitando proteção para o menor William de Oliveira Filho, preso nas imediações de uma unidade do Exercito (sic), em Deodoro, sob acusação de participação em roubo de armas de guerra, e posteriormente apresentado ao Juizado de Menores.
Na carta, o juiz de Menores demonstra-se profundamente chocado com as condições “fisicas apresentadas pelo menor, que declara ter sido torturado por praças e oficiais do Exercito, para confessar crime que não cometera” (sic).
O juiz Rui Otavio Domingues descreve o menor como “um menino subnutrido, de pequeno porte, que mais parece um tisico nos derradeiros estagios da molestia aniquiladora” (sic). Continua o juiz de Menores substituto, afirmando que “o menor declara que, alem de choques elétricos, recebera injeções que lhe afetaram a cabeça” (sic). Na carta diz, ainda, o juiz, que “ao abrir a camisa do menor viu, com horror, que os seus torturadores haviam desenhado uma cruz de sangue no peito, com instrumento cortante, escalpelando-o a sangue frio” (sic).
Dentre os personagens citados, tanto o juiz quanto o menor são nomes que, salvo melhor juízo, perderam-se no tempo e na história. O militar citado, então Ministro da Guerra, viria a ser mais tarde Presidente da República de março de 1967 a outubro de 1969, durante o regime militar.
Mas, qual a razão para recuperar este episódio? Tenho várias. A primeira, de natureza pessoal, me leva a perguntar a razão por que meu pai guardaria o recorte. Pois então, ele era professor de história e nascido em 1917. Acompanhou de perto os períodos de governo de Getúlio Vargas, testemunhou as revoluções de 1930 e a Constitucionalista de 1932. Já adulto, vivenciou a Segunda Guerra dia a dia, foi eleitor e grande admirador de Juscelino Kubitscheck, testemunhou o conturbado governo e a renúncia de Jânio Quadros, e a deposição de João Goulart – tudo antes daquele junho de 1964. Não foi um ativista político, mas tinha conhecimento e memória dos fatos que testemunhou dos anos 1930 aos 1960 do século passado. Muito provavelmente a nota do jornal atraiu a atenção dele não somente pela crueldade cometida, ou pela coragem do juiz de oficiar um dos responsáveis pelo golpe militar, como também, aí uma suposição minha, pela preocupação de que aquele fato pudesse ser o prenúncio dos tempos que viriam mais à frente.
Se esta hipótese for verdadeira, meu pai involuntariamente anteviu os anos de chumbo que nos seriam impostos mais tarde. Talvez, a pequena nota que narra as atrocidades perpetradas contra o frágil William de Oliveira Filho, fosse ele culpado ou não, isto não importa, tivesse para aquele professor o mesmo significado das inesquecíveis palavras de Winston Churchill às vésperas da Segunda Guerra, quando se referiu aos inequívocos sinais do conflito que se avizinhava como “the gathering storm”. Reconheço que são meras especulações, talvez movidas pela saudade dele ou pela nostalgia de tempos em que eu vivia ainda em inocência.
No entanto, tenho que fechar o círculo de meus argumentos retornando ao artigo recente da Folha. Entre a antiga nota em papel, agora, amarelado e o artigo recente em formato digital, quase seis décadas de mudanças transformaram nossa sociedade e o mundo em que vivemos. No entanto, assistimos com tristeza a movimentos no país que por pura e simples ignorância, por desconhecimento ou, pior ainda, expressa concordância, apoiaram um candidato à presidência que nunca escondeu sua incontida admiração pelos atos abomináveis daqueles tempos e, por extensão, também aos que os perpetraram.
Juntando tudo, tenho comigo um velho recorte de jornal que relata fatos de uma era já distante, as lembranças que desperta e as preocupações que enseja. Talvez sejam apenas peças de um quebra-cabeça da memória e da história, ou talvez, tudo não passe mesmo de um lampejo de saudade. Mas, pode também ser algo mais …
Sobre a presença de militares no atual governo, incluindo informações complementares do autor da obra já citada, artigo do UOL de 14 de novembro de 2022 explora longamente o assunto: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/14/como-ficam-os-militares-depois-da-vitoria-de-lula.htm>. Também a Nota Técnica No 58 do Ipea, de autoria de Flávia de Holanda Schmidt, publicada em setembro de 2022 e intitulada “Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo federal”, explora o tema em profundidade.