Nestes tempos em que obscurantismo néscio e negacionismo sistemático lograram colossal florescimento mundo afora, em especial no entorno de um mandatário que já se foi e de um outro que ainda perambula, a comunidade científica brasileira vivenciou um átimo de esplendor neste início de ano: a American Association for the Advancement of Science (Associação Americana para o Avanço da Ciência) anunciou, em 8 de fevereiro, a outorga do 2021 AAAS Award for Science Diplomacy (Prêmio de Diplomacia Científica) para o climatologista Carlos Nobre, e do 2021 AAAS Award for Scientific Freedom and Responsibility (Prêmio de Liberdade e Responsabilidade Científica) para o físico Ricardo Galvão, conforme já noticiado no nosso site em matérias recentes.
Fundada em 1848 e com sede em Washington D.C., Estados Unidos, a AAAS é a maior sociedade científica multidisciplinar do mundo, contando atualmente com mais de 120 mil membros; destes, para a categoria Fellow, o ‘inventor da lâmpada incandescente’ Thomas Alva Edison foi eleito no longínquo 1878. Nos dias atuais juntaram-se ao seleto grupo, entre outros, Jennifer Doudna e Charles Rice, respectivamente Nobel de Química e de Fisiologia-Medicina em 2020. Dentre os seus presidentes históricos, encontramos nomes como Robert Andrews Millikan (Nobel de Física, 1923), Arthur Holly Compton (Nobel de Física, 1927), Glenn Theodore Seaborg (Nobel de Química, 1951), Leon Max Lederman (Nobel de Física, 1988) e Stephen Jay Gould (paleontólogo). A AAAS também edita, desde 1880, a igualmente centenária revista Science, um dos periódicos científicos de maior prestígio internacional, ao lado da britânica Nature. Este sucinto parágrafo já é suficiente para autenticar a densidade das láureas concedidas aos ilustres pesquisadores.
Assim, neste atípico ano de 2021, aconteceu a singular deliberação da AAAS de destinar ambas as honrarias a cientistas de um único país – mas decisão esta não de todo acidental: as duas premiações foram justificadas pelas suas notáveis atuações na área de preservação ambiental, sobretudo da floresta amazônica. No mais, numa fortuita coincidência, ressalte-se que ambos os homenageados tiveram forte vinculação com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – o Nobre (hoje no Instituto de Estudos Avançados da USP) como pesquisador de longa data, e o Galvão (hoje no Instituto de Física, também da USP) como Diretor-Geral no período de 2016 a 2019. Tal efeméride, em tempos normais, seria motivo de júbilo e orgulho em dobro para o INPE.
Mas nestes tristes trópicos, definitivamente não vivemos tempos normais.
A distinção concedida ao pesquisador Carlos Nobre foi, de maneira justa e célere, divulgada no site do INPE em 8 de fevereiro – com a reprodução integral do longo texto da AAAS (traduzido). Menos consideração teve o professor Ricardo Galvão: nenhuma notícia, nenhuma palavra sobre a sua premiação. Frise-se que se trata aqui de títulos de igual destaque, apenas em categorias distintas, outorgadas por uma mesma entidade, e divulgadas na mesma data – portanto, sem margem para o desconhecimento parcial.
Metade da chave para a compreensão desta ‘seletividade’ está dada, de maneira explícita e categórica, no próprio texto da AAAS:
Ricardo Galvão, um físico que perdeu o seu cargo de diretor em uma instituição científica brasileira por defender dados sobre o desmatamento da floresta amazônica, receberá o Prêmio de Liberdade e Responsabilidade Científica 2021 da AAAS – (…) [prêmio este] que distingue cientistas que demonstraram liberdade e/ou responsabilidade científica em circunstâncias particularmente desafiadoras, por vezes pondo em risco as suas posições profissionais ou a sua segurança física. Quando o presidente [brasileiro Jair] Bolsonaro atacou a legitimidade de um relatório que apontava um aumento dramático no desmatamento da Amazônia, Galvão sustentou os números – uma decisão que lhe custou o cargo. (…)
Em declarações a jornalistas em 19.07 [de 2020], Bolsonaro acusou Galvão de estar mentindo e de ‘estar a serviço de alguma ONG’. (…) Galvão contestou veementemente as afirmações do Bolsonaro, considerando-as “não condizentes para um Presidente do Brasil”. Bolsonaro, no entanto, continuou os ataques. Durante entrevista coletiva em 01.08 ele afirmou que os números [dados] tinham sido fabricados “para atacar o governo [brasileiro]”. A direção do INPE então emitiu um comunicado em que “reafirmava a confiabilidade dos seus dados” – e Galvão foi exonerado em 02.08.
(…) Numa entrevista ao EOS em agosto de 2019, Galvão declarou que “o líder de qualquer país deve estar ciente de que, em questões científicas, não há autoridade maior que a soberania da [própria] Ciência”.
Repetindo: em ‘condições normais’, um reconhecimento internacional a um ex-Diretor que atuou de maneira intransigente na defesa da Ciência e da sua Instituição seria motivo de orgulho para todos os seus pares, ensejando ampla divulgação. Porém a outra metade da chave, esta oculta e astuta, optou pelo mutismo subserviente, numa suposta estratégia de “diplomacia e sensatez” da atual Direção, mas que se revelou ser, ao final e ao cabo, nada mais que uma artimanha pueril e pusilânime.
Como a história se repete e cada personagem veste o figurino que lhe parece ser apropriado para o papel que pretende desempenhar, é deveras simbólico o fato de que, ainda em 2019, quando o professor Galvão foi eleito pela revista Nature uma das “10 Personalidades que fizeram diferença na Ciência” naquele ano, exatamente pelo mesmo motivo que agora o levou à láurea da AAAS, o Diretor interino à época, Darcton Policarpo Damião, em que pese considerado um ‘interventor’ nomeado pelo mesmo Governo atual e ainda no calor dos acontecimentos, teve a hombridade e firmeza de divulgar a distinção.
Concluindo a reflexão, faz-se oportuno – ou antes, imperativo – reescrever o título desta matéria: pequenos defeitos, grandes platitudes – quando um homem não reconhece os valores do outro, a sociedade o faz: este brilha; aquele se desbota!