Trajetórias Negras na Ciência e no Serviço Público: Vozes que Transformam o Futuro
Trajetórias Negras na Ciência e no Serviço Público: Vozes que Transformam o Futuro

Trajetórias Negras na Ciência e no Serviço Público: Vozes que Transformam o Futuro

O Mês da Consciência Negra nos convida a refletir sobre um debate urgente e estrutural: a presença de pessoas negras em espaços historicamente excludentes, particularmente na ciência e na tecnologia. Este artigo reúne nove vozes poderosas de servidoras e servidores negros (pretos e pardos) das instituições representadas pelo SindCT – INPE, DCTA, AEB e CEMADEN – que não apenas ocupam espaços na ciência brasileira, mas os transformam.

Suas trajetórias são testemunhas de resistência, competência e o potencial transformador que emerge quando pessoas historicamente marginalizadas recebem oportunidade de contribuir. Não se trata apenas de histórias individuais de sucesso, mas de uma chamada coletiva para a mudança estrutural que o país precisa.

O que leva uma pessoa negra a escolher uma carreira em ciência e tecnologia em um país onde a representatividade é praticamente inexistente? As respostas são tão diversas quanto as trajetórias que as sustentam.

Para muitos dos entrevistados, a inspiração nasceu cedo, no seio da família. A educação foi apresentada como ferramenta de mobilidade social e dignidade – não apenas como acesso a um cargo, mas como possibilidade de transformar realidades. Essa compreensão profunda do papel emancipador da educação ecoa em cada frase, cada escolha profissional.

Há também o chamado pela contribuição social. Trabalhar no serviço público, particularmente em instituições de ciência e tecnologia, representa a oportunidade de impactar o Brasil inteiro. Quando um servidor público trabalha no monitoramento de desastres, na pesquisa espacial ou no desenvolvimento tecnológico, sua dedicação reverbera em políticas públicas, em vidas salvas, em conhecimento que enriquece toda a nação.

A carreira científica atrai igualmente pelo desafio intelectual e pela possibilidade de inovação. Questionar o estabelecido, buscar respostas para problemas complexos, contribuir para o avanço do conhecimento – essas motivações transcendem qualquer barreira racial. Mas quando uma pessoa negra consegue persegui-las em ambientes hostis, sua presença já é um ato revolucionário.

Nem sempre o caminho é reto. Os profissionais entrevistados relatam uma trajetória marcada por obstáculos que vão além das dificuldades naturais de qualquer carreira acadêmica ou técnica.

O primeiro desafio começa muito antes: na educação básica e no acesso ao ensino superior. Enquanto colegas brancos podem contar com redes de contato, mentorias informais e ambientes mais acolhedores, profissionais negros frequentemente trilham um caminho mais longo e sinuoso – disputando vagas em vestibulares cada vez mais competitivos, enfrentando a falta de representatividade em salas de aula e, muitas vezes, a internalização de dúvidas sobre sua própria capacidade.

Uma vez dentro das instituições, as barreiras não desaparecem – apenas mudam de forma. Há o que um dos entrevistados chamou de “pacto da branquitude” – um pacto informal onde práticas corporativistas mantêm oportunidades de progressão concentradas nas mãos de pessoas brancas. Há o olhar de desconfiança, a presunção de que o profissional negro chegou apenas pela cota ou política afirmativa, nunca pela competência. Há a invisibilidade: contribuições ignoradas, créditos apropriados por outros, voz não ouvida em reuniões decisórias.

Alguns relataram enfrentar estereótipos específicos: o “estigma do homem negro raivoso” que transforma qualquer posicionamento assertivo em agressividade; a infantilização das mulheres negras; a suspeita constante sobre qualificações e méritos.

Como superaram esses desafios? As respostas revelam uma força notável: através da excelência inabalável, do domínio profundo do conhecimento técnico que ninguém pode questionar. Através de redes de apoio – colegas que se reconhecem na luta, mentores genuinamente comprometidos com inclusão, comunidades de resistência. Através da espiritualidade, da ancestralidade, de conexões profundas com propósito maior. E, não menos importante, através da recusa deliberada de internalizar narrativas de inferioridade.

A presença desses profissionais não é decorativa. Ela transforma.

Quando uma mulher negra ocupa um espaço de liderança em uma instituição científica, outras meninas negras veem que é possível. Quando um homem negro apresenta pesquisas em foros de decisão, ele redimensiona o que é possível para futuras gerações. Essa dimensão da representatividade vai além da inspiração superficial – ela muda estruturas mentais, desafia pressupostos, abre caminhos que pareciam fechados.

Mas a transformação também é institucional. Os profissionais entrevistados relatam estar ativamente envolvidos em iniciativas de inclusão e diversidade: grupos de trabalho sobre equidade, políticas de mentoria, revisão de processos seletivos que perpetuavam exclusão, diálogos sobre clima organizacional. Eles não apenas ocupam cadeiras – eles questionam as estruturas que criaram essas cadeiras vazias em primeiro lugar.

Há igualmente uma contribuição qualitativa. Perspectivas diferentes geram soluções diferentes. Um olhar formado em contextos de diversidade socioeconômica, que compreende as realidades das comunidades brasileiras que historicamente foram invisíveis na ciência, traz uma riqueza incomparável ao conhecimento produzido. A pesquisa se torna mais relevante, as soluções mais adequadas, o impacto mais profundo.

Para os entrevistados, o aumento de pessoas negras em carreiras científicas significa muito mais que números em relatórios de diversidade. Significa justiça histórica começando a ser reparada. Significa que o conhecimento produzido no Brasil não virá apenas da perspectiva de 10% da população, mas de toda a diversidade que nos constitui.

Significa também que as políticas públicas podem ser mais inteligentes. Um país que inclui a inteligência, a criatividade, a experiência de vida de todas as suas pessoas – especialmente das historicamente marginalizadas – tem muito mais capacidade de resolver seus próprios problemas. É um imperativo ético e também um imperativo prático, de desenvolvimento nacional.

Mas representatividade sem estrutura é apenas cosmética. Os entrevistados são unânimes em apontar mudanças urgentes e estruturais:

Educação de qualidade desde a infância. Não há atalho. Se crianças negras não têm acesso a educação básica de excelência, a desigualdade será reproduzida indefinidamente. Políticas de educação pública robustas, bem financiadas e comprometidas com equidade são o alicerce.

Ações afirmativas efetivas e duradouras. Cotas são necessárias, mas insuficientes. É preciso que acompanhamento, permanência e progressão estejam garantidas. E é crucial reconhecer que mulheres negras enfrentam dupla discriminação – as políticas precisam ser interseccionais, não apenas raciais.

Políticas de liderança e tomada de decisão. Não basta estar na instituição; é preciso estar nos espaços onde as decisões são feitas. Metas de representatividade em cargos de chefia, comissões estratégicas e órgãos diretivos são ferramentas poderosas.

Programas de mentoria e desenvolvimento. Redes informais beneficiam pessoas brancas há séculos. Programas formais de mentoria compensam essa desvantagem histórica e aceleram a chegada de profissionais negros a posições de destaque.

Incentivos para pesquisa e bolsas. A ciência é cara. Profissionais negros com menos acesso ao capital cultural e econômico precisam de bolsas de pesquisa, auxílios para pós-graduação e oportunidades de internacionalização que compensem as desvantagens estruturais.

Avaliação crítica de processos seletivos. Muitos critérios aparentemente “neutros” perpetuam exclusão. É necessário questionar o viés de cada etapa: linguagem de editais, composição de bancas, critérios de avaliação.

Espaços institucionais de colaboração. Comissões de diversidade, grupos de trabalho, redes internas de profissionais negros – esses espaços não apenas oferecem suporte psicoemocional, mas geram conhecimento sobre como implementar mudanças reais.

As mulheres negras entrevistadas trazem uma dimensão adicional e urgente: a interseção entre raça e gênero cria barreiras exponenciadas, não apenas aditivas.

Enquanto homens negros enfrentam discriminação racial em instituições científicas tradicionalmente brancas, mulheres negras enfrentam tanto a discriminação racial quanto a de gênero. E não se trata de duas opressões paralelas – elas se multiplicam, criando cenários únicos de exclusão.

Uma mulher negra em liderança enfrenta não apenas ceticismo sobre sua competência (como enfrentam mulheres brancas), mas desconfiança amplificada alimentada pelo racismo. Sua assertividade é vista com mais hostilidade. Seu trabalho emocional (mediação, empatia, suporte) é mais frequentemente esperado e explorado. Sua beleza e sexualidade são frequentemente fetichizadas ou diminuídas de forma ambígua e desconfortável.

As estratégias de resistência das mulheres negras entrevistadas são múltiplas: cultivar redes de mulheres negras líderes que se apoiam mutuamente; manter a voz ativa mesmo diante da rejeição; buscar espaços onde possam ser inteiras – onde sua negritude, sua feminilidade e sua competência técnica sejam reconhecidas sem contradição; investir em trabalhos que visibilizem outras mulheres negras.

Uma das entrevistadas menciona que suas filhas são sua inspiração diária – é um testemunho de como a resistência também é ato de amor e cuidado multigeracional. Criar filhas negras com orgulho de sua história e beleza, em um mundo que questiona ambos, é uma estratégia de sobrevivência e liberdade profundamente política.

Este é o momento em que as vozes dos entrevistados ecoam com particular intensidade. Suas mensagens para colegas e para a sociedade transcendem slogans de celebração cultural:

O conhecimento é ferramenta de libertação. A ciência e o serviço público não são espaços neutros – são campos de disputa por narrativas e poder. Quando pessoas negras ocupam esses espaços, elas reescrevem o que é possível conhecer, como o conhecimento é produzido e para quem ele serve. Isso é poder transformador.

A igualdade racial não é favor, é direito. Não se trata de “ajudar” pessoas negras, de ser “tolerante” ou “progressista”. Trata-se de justiça básica, de um país que funciona melhor quando todas as pessoas têm oportunidade de contribuir. Políticas de inclusão não são caridade – são investimento em desenvolvimento nacional.

A resistência é ancestral e contínua. Séculos de escravidão, exploração e marginalização não produziram apenas vítimas – produziram resistências criativas, sabedorias ancestrais, força que reverbera até hoje. Os profissionais negros em ciência e tecnologia estão em fila contínua com abolicionistas, quilombolas, ativistas, cientistas negros que foram apagados da história. É privilégio e responsabilidade trilhar esse caminho.

Pessimismo é luxo que não temos. Uma das entrevistadas compartilha sua filosofia: “O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude, e o realista ajusta as velas.” Não se trata de ingenuidade ou negação do racismo estrutural – trata-se de capacidade de agir apesar do racismo, de transformar estruturas mesmo quando essas estruturas resistem.

Mensagem para jovens negras e negros: Seu lugar na ciência é legítimo. Sua competência é real. Seu valor não depende de validação branca. E quando você conseguir chegar, lembre-se: você não está sozinho. Há gerações de ancestrais que abriram caminho, há colegas que caminham ao lado, há futuras gerações que contam com sua presença, sua força, seu conhecimento.