Nada será como antes
Nada será como antes

Nada será como antes

Fui apresentado à realidade da Coronavirus Disease – 2019 (Covid-19), enquanto visitava a cidade natal do Dr. Fernando de Mendonça, ilustre brasileiro e primeiro diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Era 14 de março e eu estava no 17 o dia de uma longa viagem pelos estados do Piauí e Ceará. Naquela tarde, em conversa telefônica com minha mãe, ela questionou que diabos eu fazia em Guaramiranga, CE, enquanto o mundo estava à beira do precipício. De fato, longe de casa há mais de duas semanas, eu não estava ligado ao vírus, ainda que a mim ele já pudesse ter se ligado. Segui para Sobral, CE.

Levou-me a Sobral a curiosidade em conhecer a cidade com o maior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do Brasil. Além disso, foi lá que uma equipe internacional de cientistas mediu, em 29 de maio de 1919, o desvio da luz estelar causado pela gravidade do Sol. Comprovou-se, experimentalmente, a validade de uma das teorias do Dr. Albert Einstein, a mais brilhante mente do século XX. Para celebrar o feito, foi erguido no local o Museu do Eclipse. Infelizmente, quando lá cheguei, em 17 de março, a Covid-19 já o tinha fechado. Mas nem tudo estava perdido. Naquele mesmo dia, por acaso, encontrei, sentado em um dos bancos da Praça São João, um dos meus ídolos. Imóvel, mas com a serenidade habitual, lá estava o sobralense Belchior. Enquanto me posicionava para uma foto inesquecível, julgo tê-lo ouvido dizer: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. ” Seria Alucinação, pensei, para logo escutar: “Você não sente, nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança, em breve, vai acontecer.” Imaginei que tivesse a ver com a Velha Roupa Colorida, que eu vestia naquela quente manhã.

Dois dias depois, eu cheguei a Teresina, onde o ar estava mais quente e pesado que aquele encontrado três semanas antes, quando fui expulso do Palácio do Governo, por registrar o criminoso desperdício de água no local. Desde que li sobre o Museu da Água, no distópico Não Verás País Nenhum (1981), obra-prima de Ignácio de Loyola Brandão, ofendo-me todas as vezes que presencio o desperdício do bem mais valioso para a humanidade: a água. Registrei meus protestos junto à Ouvidoria do Governador Welington Dias, mas até agora não recebi o seu pedido de desculpas. Em 19 de março, a Covid-19 já tinha fechado os principais atrativos turísticos da capital do Piauí. Restou-me conhecer dois dos maiores shoppings centers da cidade. Ao caminhar por seus enormes e vazios corredores, lembrei-me de Paul Gilding, que, em A Grande Ruptura (2014), afirmou que os shoppings centers tornar-se-ão peças de museu, em decorrência da impossibilidade de a Mãe Terra prover os insumos necessários para alimentar nossas almas vazias. Teria esse dia chegado?

No voo de retorno a São Paulo, vivi a esquisita sensação de usar uma máscara, que comprara em uma farmácia situada à beira da estrada Piripiri-Teresina. Veio-me à mente o livro O Colapso de Tudo (2012), no qual o Dr. John Casti, apresentou alguns eventos aos quais a nossa civilização já foi, ou pode ser, submetida: morte em massa das abelhas, colapso da rede mundial de computadores, guerra nuclear, colapso da globalização, mudanças climáticas e pandemias. Cita o caso da gripe espanhola (1918), que causou a morte de 50 milhões de seres humanos. O comportamento humano é mesmo curioso. Conhecemos os fatos, mas negamos a realidade. Como autodefesa, pensamos: isso foi há um século, jamais ocorrerá novamente. Até que…

Após 3 semanas de ausência de casa, foram mais 2 semanas sem poder ver, abraçar e beijar os meus filhos. Há dois meses não encontro amigos e parentes. Até Papito e Galileu, cachorros dos vizinhos, sumiram. Vi-me, ainda, privado das minhas aulas e dos colegas de natação e Pilates. O voo no qual eu pretendia visitar minha mãe no Dia das Mães já foi cancelado. Em nosso último contato, telefônico ela protestou contra as ambulâncias que passam na sua rua a fazerem barulho. Concluí que a sirene das ambulâncias se assemelha ao cidadão vestido de preto, que aparece para anunciar a morte de astronautas em Os Eleitos, um dos meus filmes prediletos. Impossível não pensar na aflição dos responsáveis por cuidarem dos idosos em três casas de repouso próximas à minha residência. Deve ser angustiante!

Enquanto corro da Covid-19 pelas ruas desertas, meu relógio chinês faz contatos imediatos com satélites americanos (GPS) e russos (GLONASS). Enquanto caminho, lembro que foi durante os 16 meses de quarentena da Peste Negra, entre 1665 e 1667, que a Natureza revelou a um jovem de 23 anos alguns dos seus segredos. Foi na casa de sua mãe que o inglês Isaac Newton teve as grandes sacadas sobre a Lei da Gravidade, o Cálculo Diferencial-Integral e a Decomposição da Luz. Mas sem o alemão Albert Einstein, não seria possível ao meu relógio chinês determinar com precisão a distância que percorro em cada caminhada. A velocidade dos satélites torna o tempo relativo, exigindo sua correção. Sem Newton e Einstein, não existiriam sistemas de posicionamento via satélite. E sem a linguagem da Ciência não existiria comunicação entre o meu relógio chinês, os satélites russos e americanos e a teoria alemã.

Fui despertado desses pensamentos transcendentais por uma pequena, mas barulhenta carreata pelas ruas centrais de São José dos Campos. Era final de tarde de domingo e eu logo pensei: será que eles estão celebrando a vitória do Brasil sobre a Alemanha por 2 × 0 na copa de 2002? É que a Globo tinha reprisado o jogo e muitos participantes da carreata trajavam a camisa da seleção, aquela que traz os logos da CBF e da Nike. Eu vestia uma camiseta preta com a imagem do comunista Yuri Gagarin nela estampada. É que além do nosso segundo pentacampeonato, aquele 12 de abril marcava o 59 o aniversário da histórica viagem de Gagarin ao espaço. Parei e logo vieram as faixas: “Fora Dória”, “Não ao Aborto”, “Somos todos Bolsonaro”, “Fora PT”, “Globo Lixo”, “Fora STF”, “AI-5”, “Intervenção Militar Já”, “O Brasil Não Pode Parar” e “Dória Comunista.” Fiquei a pensar se aquele Dória era o João, que recentemente vendeu o seu jato particular. Teria ele virado comunista?

Senti que minha cabeça girava à velocidade dos satélites com o qual o meu relógio chinês se comunicava. O Sol se punha e o horizonte se apresentava vermelho como nunca antes na História. Senti uma comichão no meu braço esquerdo. Era o meu relógio chinês a perguntar, em bom português: “Deseja parar?” Malditos comunistas, pensei, para logo gritar: “Fora Comunistas!” Fui ovacionado pelo pessoal da carreata, mas naquele momento eu não mais conseguia distinguir a ficção da realidade e passei a considerar a hipótese de eu estar acometido da síndrome do Dr. Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis em O Alienista (1882). O doutor internou quase toda a cidade em seu sanatório psiquiátrico, para logo concluir que os únicos doidos eram ele e outros poucos que não tinham sido internados. Volto a olhar a carreata e vejo a faixa “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.” Lembrei de Manuel, meu professor de literatura na escola, que numa aula, visivelmente emocionado, recitou Vozes D´Africa (1868), de Castro Alves, que em um dos seus trechos diz: “Deus! ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu´estrela tu t´escondes?” A carreata já se ia, e nela eu fui capaz de reconhecer uma única fisionomia. Era um jovem que eu havia encontrado numa das livrarias da cidade folheando o livro O que você precisa saber para ser um idiota, obra de um autointitulado filósofo. O fato de um rapaz de 20 anos desejar tornar-se um idiota me intrigou, mas considerei que ele poderia também estar perturbado ao ver alguém da minha idade folheando O Primeiro Homem (2018).

Ao chegar em casa da fatídica caminhada, a TV anunciava que o número de mortes devida à gripe chinesa nos EUA pode chegar a 200.000 pessoas. Globo lixo! Mudei para o canal do Bispo, que ludicamente explicava que o vírus era coisa de Satanás e que, para enfrenta-lo, seria necessária a doação de uma módica contribuição financeira, além de um domingo de jejum. A simples menção à palavra jejum quase me fez desmaiar. Desliguei a TV e fui preparar um café na cozinha. Do rádio do celular ouvi que Boris Johnson estava na UTI, devido à gripezinha. Pela rádio CBN, ouvi ainda que, de uma recente viagem oficial aos EUA, a comitiva do nosso presidente trouxera 25 pessoas infectadas com a Covid-19. CBN lixo! Enquanto moía o café fiquei a pensar: onde antes se tinha Franklin Roosevelt e Winston Churchill, há hoje Donald Trump e Boris Johnson. Onde tínhamos o ditador Getúlio Vargas, temos hoje o Messias. Concluí que o pessoal da carreata estava certo. Abri a janela e gritei, com toda força: “Fora comunistas!”

Depois de duas doses de café expresso, uma barra de chocolate e um banho gelado, voltei a mim. Diagnostiquei que o meu surto podia ser explicado pela mudança radical à qual eu fora exposto nas últimas semanas. Após curtir a paradisíaca Jericoacoara eu estava em meio à III Guerra Mundial, cujo inimigo é imune aos 15 mil artefatos nucleares disponíveis para nossa proteção. Pouco a pouco vou constatando que os efeitos econômicos, sociais, físicos e psicológicos da Covid-19 serão devastadores. Nas últimas semanas, mais de vinte milhões de americanos solicitaram seguro-desemprego. Trata-se de uma quantidade superior a todos os empregos gerados nos EUA desde a crise econômica de 2008. Para enfrentar a crise, os EUA investirão 2 trilhões de dólares. Ainda assim, serão os campeões mundiais em número de mortos pela Covid-19. O papel que os EUA tiveram na I e na II Guerra Mundial é agora desempenhado pela China, sendo razoável supor que a III Guerra Mundial em curso, acelerará a decadência dos EUA e a ascensão definitiva da China como a maior superpotência do planeta. Como sempre ocorreu, é o futuro em construção em meio a uma guerra.

No Brasil, enquanto muitos agonizam nos hospitais, milhões vão dormir com fome e outros tantos não conseguem dormir, ante a perspectiva de perderem seus empregos, órfãos de Hitler e Mussolini saem às ruas sem saber que: o Muro de Berlim caiu; a URSS evaporou; o nazismo e o fascismo levaram mais de 50 milhões de seres humanos à morte; no que tange à percepção da corrupção, a nota do Brasil é 35 (em um total de 100), enquanto a da não democrática China é 41; a quase totalidade dos 130 anos da República brasileira foram exercidos, ou tutelados, por militares; e que a Lei 7.170/1983, produto da Ditadura Militar, tão a gosto dos manifestantes, criminaliza manifestações daquele tipo.

Tendo convivido com civis e militares por décadas da minha vida profissional, posso afirmar que farda não define caráter. Além da corrupção, existem outros parâmetros indicadores de caráter. Por exemplo, como é possível ser contra o aborto, por considerá-lo um atentado à vida, e apoiar alguém que tem como herói um torturador? Como é possível ser a favor da vida desde a concepção, e colocar em risco a sua vida e a dos seus semelhantes em plena crise da Covid-19? A leitura de Psicopatas do Cotidiano (2015) seria um bom começo para algumas dessas perdidas almas. Se não funcionar, resta a aplicação da Constituição, da Lei de Segurança Nacional e de outros dispositivos legais.

As previsões mais otimistas dão conta de que uma vacina somente surgirá daqui a um ou dois anos, ou seja, seremos obrigados a conviver com a pandemia por muito tempo e a quarentena terá que ser redefinida. Como fazê-lo ainda é uma incógnita, mas se não perdermos tempo com carreatas e outros inúteis protestos, poderemos adaptar experiências de outros países à nossa realidade. Por ora, a tática é conter a propagação do vírus de todas as formas possíveis, inclusive com o uso de máscaras. O inverno está chegando, e com ele, várias doenças respiratórias. Os próximos desafios serão: a realização de testes em massa, o estabelecimento de um plano gradual de abertura dos pontos comerciais e a massiva campanha de conscientização da população quanto aos riscos envolvidos. Até que a Ciência chegue à vacina, não há alternativa. O mundo, forçosamente, desacelerará. Teremos mais tempo para conviver com a família, ler, rever nossos conceitos de sucesso, falar menos mal dos governos e ajudarmos materialmente os milhões que de nós precisam, inclusive doando dinheiro. O novo coronavírus destruiu o mito de que podemos domar a Natureza ao nosso bel prazer. Construímos nosso castelo de areia à beira do mar, até que uma pequena onda o atingiu. Não nos iludamos, a Covid-19 é fichinha diante das consequências que resultarão do aquecimento global ora em curso. Estamos escrevendo as últimas páginas de um dos capítulos da história da civilização humana. Neste momento ninguém tem ideia de como será o próximo capítulo, mas uma coisa é certa: nada será como antes! #FiqueEmCasa

Autor