Dois anos de ataques ao INPE
Dois anos de ataques ao INPE

Dois anos de ataques ao INPE

Em 2018, logo após ser escolhido para assumir o cargo de ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles deu entrevistas à imprensa e mencionou a constelação de satélites Planet, representados no Brasil pela empresa Santiago & Cintra. Já nessa época, o ex-diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, que atua em defesa da agropecuária, demonstrava interesse em contratar uma empresa privada para realizar o serviço de monitoramento dos biomas brasileiros.

Sem conhecer os serviços prestados pelo INPE, em dezembro, Ricardo Salles disse que os dados fornecidos pela instituição eram “genéricos” e não se sabia se o desmatamento estava ocorrendo em terras indígenas, em áreas privadas ou unidades de conservação. Essa foi a primeira, de uma séria de afirmações falsas que o governo viria a fazer a respeito do INPE.

Ao assumir o ministério, os ataques ao INPE fizeram parte da pauta do governo. Em janeiro, o ministro disse à repórter Andrea Sadi, do G1/TV Globo, que iria criar um sistema de monitoramento em tempo real no valor de 100 milhões e que esse sistema seria pago pelo Fundo Amazônia. Atualmente, para manter os sistemas de monitoramento do INPE, Deter e Prodes inclusos, o governo gasta R$ 1,5 milhão.

O ministro também deu declarações falsas de que o INPE não realiza a análise de área desmatada e que 60% do desmatamento ocorrido ano passado teria sido dentro de unidades de conservação e terras indígenas. O número oficial é de 15%.

Às vezes o Ibama não dá licença porque não quer que desmate, mas tá dentro da área que o proprietário pode desmatar. Em tese, ele está ilegal, mas não fez nada de errado.

Então precisamos ter menos emoção nisso aí para lidar de maneira mais técnica. Por isso queremos essa sala de cenários no ministério. Vamos trazer os dados do Inpe, que são bons, mas não são precisos do ponto de vista desse esmiuçamento”, disse o ministro ao jornal Folha de S.Paulo.

Ao contrário do que o ministro falou, o INPE esmiúça os dados, tanto que os municípios campeões de desmatamento sofrem sanções, como a não liberação de crédito agrícola a produtores rurais – isso deve chatear muito os amigos do ministro.

Em entrevista coletiva, Salles, ao lado de Bolsonaro e dos ministros Augusto Heleno da Segurança Institucional e Ernesto Araújo das Relações Exteriores, cometeu fraude intelectual ao tentar desqualificar o sistema de monitoramento do INPE, Deter, apresentando uma análise de seus dados feita com observações selecionadas a dedo. A apresentação de Salles utilizava imagens do INPE em comparações com imagens do Sistema Planet – lembrando que as imagens do sistema Planet possuem resolução inferior às imagens utilizadas pelo INPE. Na análise apresentada por Salles, a taxa de desmatamento no Brasil seria inferior à que foi declarada pelo INPE. Uma comparação honesta demandaria uma série de dados, ano a ano e mês a mês, com imagens da empresa Planet, o que não existe.

Tendo suas mentiras desmascaradas pela imprensa, Salles ganhou reforço de Bolsonaro que, em agosto de 2019, acusou o diretor do INPE de mentir sobre os dados recordes de desmatamento e de estar atuando a serviço de alguma ONG.

O episódio tomou proporções internacionais e desencadeou a demissão do diretor, Ricardo Galvão, e a nomeação de um diretor interventor, o militar, amigo do ministro da Ciência e Tecnologia, Darcton Damião.

Com um militar à frente do INPE, houve um período de calmaria. Até que novos dados de desmatamento foram divulgados e, mais uma vez, o governo exigiu um culpado. A exoneração do cargo de Coordenadora Geral de Observação da Terra, do INPE, da pesquisadora Lúbia Vinhas, em 2020, demonstrou que o governo tem mais preocupação em esconder os dados de desmatamento e queimadas do que em combater suas causas.

Enquanto o ministro da Ciência e Tecnologia, mais conhecido por turista espacial, Marcos Pontes, e o diretor interventor do INPE se ocupavam em mascarar a exoneração da coordenadora com uma reestruturação no instituto, outras movimentações contra os serviços prestados pelo INPE foram realizadas:

1. Sem realizar licitação, a Polícia Federal contratou o acesso a imagens de satélites da empresa norte-americana Planet Labs por R$ 49 milhões, para monitorar desmatamento e queimadas. A dispensa de licitação ocorreu sob o argumento de que a empresa entrega um serviço único, que nenhuma outra empresa tem. Parece que a Polícia Federal também desconhece os serviços do INPE.

Em 18 de setembro, a ministra Ana Arraes, do Tribunal de Contas da União (TCU), mandou suspender o contrato. Na decisão, a ministra afirma que análise preliminar de técnicos do tribunal mostra que “a aquisição das imagens contratadas, em tese, não agregaria vantagem alguma que já não fosse oferecida pelo monitoramento desenvolvido Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ou mesmo gratuitamente por outras entidades, podendo, eventualmente, configurar prejuízo ao erário federal”. Arraes pediu informações para a PF, para o Ministério da Justiça, que financiou o contrato, e também quer ouvir o INPE.

Em resposta, a PF diz que o INPE provoca desinformação contra novas iniciativas para não perder a hegemonia da narrativa e do conhecimento do desmatamento no Brasil. No ofício, a polícia afirma que o trabalho do órgão é insuficiente e não atende à demanda da segurança pública. A PF compara o INPE aos taxistas, que tentaram proteger seu mercado de atuação impedindo a entrada da Uber.

Por fim, a Ministra revogou sua decisão e a compra das imagens foi autorizada.

2. O Ministério da Defesa anunciou a compra de um satélite por R$ 145 milhões, também para realizar monitoramento de queimadas e desmatamento. De acordo com o Ministério, o INPE poderá utilizar as imagens desse satélite para, supostamente, melhorar os serviços prestados. O ex-diretor do INPE, Gilberto Câmara, grande conhecedor da área, explicou durante entrevista que, pelo valor destinado, o único satélite possível de ser comprado é um satélite que monitora degelo e possui imagens inferiores às utilizadas pelo INPE, além de não ser capaz de penetrar nas copas das árvores. Câmara apelidou o novo satélite de “cloroquina espacial”.

Os ataques de Salles ao INPE também receberam reforço do vice-presidente da República, General Hamilton Mourão. O aumento absurdo da quantidade de queimadas no país, algumas comprovadamente criminosas, e a falta de combate às mesmas, colocou o INPE, mais uma vez, em evidência.

Desta vez, com um militar no comando do INPE, restou a Mourão insinuar, sem citar nomes, que “alguém” no INPE faz “oposição” ao governo do presidente Jair Bolsonaro e prioriza a divulgação de dados negativos sobre queimadas.

“Não é o INPE que está divulgando, é o dr. Darcton [Policarpo Damião] lá, que é o diretor do INPE, que falou isso? Não. É alguém lá de dentro que faz oposição ao governo. Eu estou deixando muito claro isso aqui. Aí, quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga. Quando é positivo, não divulga”, afirmou Mourão.

A declaração teve como alvo o ex-diretor Gilberto Câmara que, mesmo concorrendo ao cargo de novo diretor do INPE, não se intimidou e rebateu o General através de sua conta no Twitter: “Bom dia, @GeneralMourao. Primeiro: não faço oposição ao governo, defendo o Brasil tanto quanto você. Segundo: não trabalho mais no INPE. Terceiro: em Ciência, quem tem cinco estrelas sou eu.”

Um dia após a declaração polêmica, Mourão solicitou uma reunião com o diretor do INPE, Darcton Damião. Após a reunião, em entrevistas, Mourão tentou amenizar o ocorrido, mas sem deixar de alfinetar o trabalho do INPE, sugerindo, desta vez, que o trabalho é mal feito: “eu conversei com ele [para] que o INPE coloque explicações sobre o que é o foco, o que é ‘pixel’ para que o camarada leigo que for pegar aquilo”.

Sem deixar o assunto esfriar, General Mourão publicou um artigo, no dia 19 de setembro, sobre as queimadas na Amazônia.

A intenção de Mourão, além de desqualificar o trabalho do INPE, é minimizar as denúncias do aumento das queimadas e da sua falta de combate.

Em seu artigo sugere que as queimadas são um cenário encenado e afirma:

As imagens acusam todos os focos de calor, o que não significa incêndio

(…)

Não se deixem levar por narrativas tiradas da cartola, como o coelho daquele mágico.”

Recentemente, o ministro da Ciência e Tecnologia pode ter dado mais um reforço aos ataques ao INPE, em especial, ao Programa Espacial Brasileiro. Através de Portaria, Marcos Pontes criou um grupo de trabalho para revisar a Política Nacional de Desenvolvimento de Atividades Espaciais – PNDAE. O Grupo, que será composto por representantes do ministério e da AEB, poderá convidar representantes de outros órgãos públicos, de entidades públicas e, – acreditem – de empresas privadas, ou especialistas.

Em abril deste ano, Salles foi o grande protagonista de uma reunião interministerial. O Ministro defendeu abertamente, sem nenhum pudor e com profundo desrespeito a milhares de famílias em luto, usar o momento da pandemia da Covid-19 como uma oportunidade ideal para “passar a boiada” da destruição ambiental, já que concentra a atenção da mídia e sem grande barulho por parte da sociedade. A reunião foi gravada e o vídeo amplamente divulgado.

Em entrevista para a Rádio Jovem Pan na semana passada, Salles demonstrou sua verdadeira preocupação como ministro do Meio Ambiente, a impossibilidade do crescimento de pastagens: “houve uma retirada, ou diminuição substancial do gado criado solto, o gado a pasto. Essa perseguição contra a pecuária extensiva no Brasil. Com isso, cresce muito capim, mato, e queima muito”. O ministro também aproveitou para culpar os movimentos ambientalistas pelas queimadas, ao dizer que fazem lobby e impedem o uso de substâncias que retardam a proliferação dos focos de incêndio. Além disso, declarou ser a favor de um crescimento do garimpo na Amazônia como forma de desenvolvimento econômico da população local: “o garimpo por si só pode ser feito de uma maneira menos agressiva ao meio ambiente, com licenciamento ambiental, dentro das regras, desde que a gente não tenha essa politicagem que a esquerda colocou, alguns a serviço de interesses financeiros e outros por desvios ideológicos”.

Em matéria do Jornal do SindCT, publicada EM 2019, o sindicato já alertava:

“Ricardo Salles é o adversário a ser combatido e desmascarado em suas reais intenções, pois tanto o ausente cosmonauta quanto o interventor empossado recentemente são apenas peões no xadrez em que o INPE está sendo disputado.”

Se o ministro Salles empenhasse metade da energia que gasta combatendo a ciência e os fatos para combater o crime ambiental, não estaríamos assistindo a flora e a fauna brasileiras arderem em chamas.

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Autor

  • Fernanda Soares é jornalista profissional formada há 28 anos. Em 2012 recebeu o prêmio Beth Lobo de Direitos Humanos das Mulheres, oferecido pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, por sua cobertura da desocupação do Pinheirinho. É autora do livro “A solução Brasileira - História do Desenvolvimento do Motor a álcool no Brasil”, publicado e distribuído pelo SindCT, de nove livros paradidáticos infantis, da editora Todolivro, e do livro "Tudo o que você sempre quis saber sobre a urna eletrônica brasileira", publicado pelo SindCT. Em julho de 2022, Fernanda ofereceu, gratuitamente, os direitos autorais do livro sobre a urna eletrônica ao TSE. Em 2023, recebeu a Medalha Cassiano Ricardo, oferecido pela Câmara Municipal de São José dos Campos.