Em rota para a irrelevância
Em rota para a irrelevância

Em rota para a irrelevância

Desnecessário repetir que vivemos tempos estranhos e difíceis em praticamente todos os aspectos vitais de nossa nação – na saúde, na economia, na política, na educação, e em outros tantos. Também é desnecessário reiterar o quão importante são os exemplos em momentos de crise. Neste quesito, um de nossos problemas são os exemplos deploráveis produzidos diuturnamente por nossas autoridades.

Temos um chanceler que precisa ser substituído por um almirante no diálogo com parceiros estratégicos, pois o chefe do Itamaraty não é mais reconhecido como interlocutor em razão de sua notória “inabilidade diplomática”. Em suas próprias palavras, “Que sejamos pária”.

Seria aborrecido lembrar também os maus exemplos do presidente da República, Jair Bolsonaro, e do atual ministro da saúde, Eduardo Pazuello, quanto às questões de política pública para o combate à Covid-19 e, para encerrar, o recente caso do deputado federal preso por ordem do Supremo Tribunal Federal, membro ele da base do governo e que decidiu ofender ministros do Supremo, pregar um golpe de estado, e recordar com saudade dos “bons tempos” do regime de exceção sob o AI-5. A propósito, ele se vale das franquias da democracia para tentar solapá-la e corrompê-la, infelizmente sob o entusiasmado aplauso dos apoiadores do governo atual.

Deixemos, no entanto, estes desagradáveis fatos, algo distantes do dia a dia de nossas organizações de ciência e tecnologia, para nos concentrarmos nos maus exemplos que nos estão mais próximos. Chegamos agora ao caso da forma como o Ministério da Ciência e Tecnologia, sob o comando de Marcos Pontes, e o INPE, atualmente dirigido por Clézio de Nardin, reagiram a importantes premiações recebidas por renomados cientistas brasileiros. Estamos nos referindo às premiações concedidas pela centenária American Association for the Advancement of Science (AAAS) ao climatologista Carlos Nobre e ao físico Ricardo Galvão, fatos amplamente noticiados, particularmente em publicações do SindCT. O anúncio deu-se no dia 8 de fevereiro de 2021.

Estranhamente, como apontado pelo SindCT em 16 de fevereiro no artigo “Grandes feitos, pequenas atitudes”, embora os dois cientistas homenageados tenham tido forte vinculação com o INPE ao longo de suas carreiras profissionais, o Instituto noticiou apenas a premiação concedida a Carlos Nobre, e não a que foi conferida a Ricardo Galvão. As razões são óbvias e estão detalhadas no citado artigo. Desde que o prêmio foi anunciado se passaram mais de duas semanas, e neste ínterim o assunto foi objeto de publicação em diversos portais, como o JC Online da SBPC, Parque Tecnológico de São José dos Campos, Deutsche Welle, Defesa.com.br, FAPESP, FALAN e tantos outros. Já o site do INPE continua mudo, tal qual uma esfinge egípcia.

No final de 2019, Ricardo Galvão foi incluído na lista da revista “Nature” dos 10 cientistas que se destacaram naquele ano. A distinção alcançada por Galvão foi motivo de júbilo para a comunidade científica nacional e internacional. Naquela época, o INPE era dirigido pelo diretor interino, um militar, que mesmo cumprindo ordens, não escondeu o mérito e a honraria concedidas ao diretor apeado do cargo por defender o INPE de ataques do próprio governo. A notícia foi publicada no site do INPE onde se destaca: “O ex-diretor do INPE, Ricardo Galvão, foi mencionado entre as dez personalidades que fizeram a diferença para a ciência no ano de 2019. A notícia foi recebida com grande satisfação pelo diretor, Darcton Policarpo Damião, e servidores do Instituto”.

Gostaríamos, no entanto, de também pontuar o (mau) exemplo de nosso ministério no tocante às duas premiações recentes. Tinha aqui o ministério uma magnífica oportunidade para noticiar algo que a (quase) todos os brasileiros é motivo de orgulho e regozijo. No entanto, nada foi noticiado, nada. Mas quais seriam as razões?

Quanto ao Dr. Galvão, as suspeitas são as mesmas do artigo citado, que se resume no temor em desagradar o presidente da República em razão de atritos pretéritos, dada a intransigente defesa da ciência e da integridade dos dados do INPE pelo Dr. Galvão. Quanto ao Dr. Nobre, embora de forma menos ruidosa, sua também intransigente defesa de soluções ambientalmente responsáveis para a exploração econômica da região amazônica, muito provavelmente, colocam seu nome no rol daqueles que são vistos como contrários à política ambiental atual. No final das contas, dá no mesmo, e o MCTI também deve ter desconsiderado a notícia pelo mesmo temor.

Perdeu o ministério, e perdemos todos nós. Mesmo assim, como é notório, o MCTI continua em sua constante e frenética busca por notícias, basta acessar sua página eletrônica e observar seu conteúdo. No entanto, há critérios para esta busca – não desagradar o chefe do ministro, e não eclipsar o personagem menor que toda esta propaganda busca promover.

Aos homenageados, vale a pena citar que estão em excelente companhia, já que todos devem se recordar do constrangedor (para o governo) episódio da concessão do Prêmio Camões 2019 a Chico Buarque de Holanda. Pelo protocolo, o diploma do prêmio deveria trazer a assinatura dos presidentes do Brasil e de Portugal. Tal não ocorreu, dada a recusa do presidente brasileiro. Chico Buarque não se abalou, e escreveu que “A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo prêmio Camões”.

Sendo assim, e por analogia, os homenageados pela AAAS poderiam também considerar que o não reconhecimento de suas premiações por órgãos do estado brasileiro voltados à ciência e tecnologia passam um involuntário atestado de que estão certos em suas lutas. Tomem a recusa como um segundo prêmio.

Resta, no entanto, a impressão que caminhamos para a irrelevância em razão de tantos episódios negativos. Não valorizamos os bons exemplos – de fato, parece que nosso governo se envergonha deles. Por outro lado, os maus exemplos, aos olhos dos brasileiros sensatos e do mundo lá fora, abundam. Que tempos estranhos, que tempos difíceis. Que sensação ruim que nos dá.

Já que lembramos Camões, poderíamos encerrar com um fragmento de sua obra, na qual disse:

Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei porquê.”