‘Estamos perdendo oportunidades por falta de farol alto’, diz Renato Janine Ribeiro
‘Estamos perdendo oportunidades por falta de farol alto’, diz Renato Janine Ribeiro

‘Estamos perdendo oportunidades por falta de farol alto’, diz Renato Janine Ribeiro

O Brasil corre o risco de morrer na praia, feito um carro de última geração guardado na garagem, sem manutenção. O alerta é do filósofo e cientista político Renato Janine Ribeiro, eleito no último mês presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

“Perdemos possibilidades no Brasil por falta de envergadura”, disse ele em entrevista exclusiva a OVALE, na qual avalia a ciência, fala do Inpe, da RMVale e do governo federal. Leia a entrevista na íntegra.

Já tomou posse na SBPC?

Não, a posse será virtual, daqui um mês.

Quais os planos do senhor para a entidade?

A SBPC está em ótimas mãos. Tanto Helena Nader [presidente anterior] quanto Ildeu Moreira [atual presidente] fizeram um trabalho muito importante na defesa da ciência e das causas correlatas. Pretendo dar continuidade a isso e fortalecer essas causas

Que causas são essas?

A ciência, obviamente. A educação decorrente disso; a cultura que está no nome da revista da SBPC; a saúde, que hoje é mais do que nunca prioritária; o meio ambiente, que não podemos separar do restante; a tecnologia, que é a aplicação prática da ciência; e a inclusão social, que é a condição absoluta para que a gente consiga fazer tudo o que o país pode render.

Como analisa o país?

O Brasil é muito desigual e dá poucas oportunidades de educação, moradia, alimentação e saúde para 70% da sua população. Temos 30% que desfruta de suas oportunidades. E mais do que o dobro disso que não consegue desenvolver os talentos que porventura tenha. Desperdiçamos esses talentos de possíveis cientistas, artistas, empresários, de todas as áreas. Se conseguirmos promover a inclusão social com alimentação, educação e saúde, vamos multiplicar o que o Brasil faz por três. Se hoje com menos de um terço da população conseguimos chegar à 5ª economia mundial e à 11ª em produção de ciência no mundo, quando estivermos funcionando a 100% o Brasil vai conseguir muito mais. Queremos um projeto de desenvolvimento do Brasil.

Como anda a ciência brasileira?

Temos uma ciência muito qualificada e com grande produção. Por outro lado, temos o problema muito sério que é o corte de verbas, que pode inviabilizar. Imagina que você tem um ‘Mercedes Bens’ do último tipo, mas não troca o óleo. Vai perder o carro que custou centenas de milhares de reais porque você não quis gastar uma centena de reais para trocar o óleo. O supercomputador Tupã do Inpe pode parar por falta de dinheiro para pagar a conta de luz. Quanto é o valor da conta de luz em relação ao do Tupã? É muito pouco. Estamos numa espécie de versão do ‘morrer na praia’. Temos décadas com aparato científico, patrimônio histórico e cultural e um país que corremos o risco de colocar tudo isso a perder por não dar manutenção básica. Temos que dar essa manutenção.

Desperdiçar é muito pior do que não ter condições?

Com toda a certeza. Não é só desperdício de comida que temos, que é visível no país. Estamos falando de gente, de talentos. Nos ambientes mais pobres são poucos os talentos que eles podem se desenvolver, às vezes só esporte e artes. Mas se houver talentos para empresários, cientistas, médicos, como vai ser? Estamos perdendo possibilidades no Brasil por falta de farol alto, de envergadura.

A pandemia mostra que, sem ciência, estaremos fadados ao atraso?

Perfeitamente. Costumo comparar com a gripe espanhola, que matou até 5% da população mundial há 100 anos, o que deu de 50 a 100 milhões de pessoas. A população se multiplicou por quatro depois disso. Se tivéssemos hoje a mesma mortalidade da gripe espanhola, perderíamos de 200 a 400 milhões de pessoas no mundo. Temos 4 milhões por enquanto, que é muita gente, mas salvamos 396 milhões de vidas porque a ciência se desenvolveu. A ciência salva vidas. Usar máscara, fazer o distanciamento físico e a higiene das mãos são medidas básicas e fáceis de fazer. Hoje, a internet permitiu que diversas atividades fossem feitas pela internet, no teletrabalho. Houve conversão de parte da economia para o virtual, que é o primeiro grande benefício da ciência. A vacinação está reduzindo o número de óbitos e internações. O século 20 viveu o final de uma tragédia que foi a varíola. A doença foi eliminada da face da Terra por causa de uma vacina. Tivemos 400 milhões de mortos em 70 anos do século 20 e quantos terão sido mortos por varíola? A ciência foi capaz de vencer isso.

O Inpe tem o menor orçamento da sua história em 2021 e corre o risco de não ter dinheiro para pagar as contas básicas, como luz e manutenção, muito menos para novas pesquisas ou projetos. Que risco corre o Inpe sob o atual governo?

Temos risco de fazer com que os cientistas mais jovens deixem o Brasil, o que é raro, porque o Brasil tem pouca fuga de cérebros comparado a Argentina e Índia. Corremos o risco de perder toda uma projeção científica que o país adquiriu. O pesquisador Carlos Nobre conta que tínhamos cerca de 10 mil mortos por desastres naturais por ano. Graças à ciência, é possível prever os desastres com algumas horas de antecedência e tirar as pessoas dos locais. Isso salvou muitas vidas. O número de mortos por ano em desastres naturais caiu muito graças ao Inpe, ao Cemaden, que são institutos esplêndidos aí no Vale do Paraíba. Se colocarmos isso em risco, perdemos muita coisa. Vários setores da economia perdem. Por isso essa oposição entre ciência e economia ou entre saúde e salvar o PIB são erradas. A saúde é extremamente importante para o PIB e a ciência também. Todas as áreas de atuação da SBPC impactam positivamente na economia.

Como será a relação do senhor com o governo Bolsonaro?

De independência e diálogo. A SBPC sempre foi independente aos governos, e será a qualquer governo. É sociedade de pessoas comprometidas com a ciência, educação e outras áreas, e não somos vinculados a nenhum partido ou grupo político. Ao mesmo tempo, o governo foi eleito para representar todos os brasileiros, para fazer tarefas importantes à sociedade. O MCTI é o principal órgão de diálogo. Da nossa parte, seremos o mais leal possível.

O senhor e outros filósofos e juristas pediram ao Supremo Tribunal Federal a interdição do presidente Bolsonaro. Ele não tem condições de governar?

Isso foi há dois meses. Pedimos ao STF para averiguar se ele tem capacidade cognitiva e emocional para governar o país. Não sabemos isso e temos o direito de saber se as pessoas que estão exercendo o cargo tem essa capacidade. A legislação não é clara sobre isso. Deixo claro que essa é uma questão individual e que não tem nada a ver com minha posição na SBPC. São duas situações inteiramente independentes.

O que revela a onda negacionista na qual o país está mergulhado?

Revela que acontece ao longo da história. Há período em que há avanços e outros de retrocessos. No nosso caso, tem muito a ver com a crise econômica que começa em 2008 e que fez o poder aquisitivo de muita gente cair. As pessoas empobrecidas reagem menos, porque tem menos acesso aos órgãos de poder. Isso criou uma série de conflitos distributivos importantes e eles nem sempre forem observados com o devido cuidado. Em vários países, houve crise econômica e prevaleceu uma espécie de vingança, de pessoas culpando grupos por causa dos problemas econômicos, como os imigrantes. É um discurso que aparece muito na Europa. No Brasil, temos uma versão disso com o preconceito com o nordestino. As mulheres, negros, indígenas, homossexuais estão conquistando cada vez mais espaço na sociedade e algumas pessoas atribuem a isso uma crise que é de natureza econômica. E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Mas o pior é quando a pessoa sente que não tem futuro, com perda de emprego, poder aquisitivo, promoção, e isso criou uma amargura que pode ser uma revolta, que pode ser amarga e destrutiva.

Por fim, quais as prioridades na área de ciências que o senhor acha que o Brasil terá que tomar daqui para frente? Nesse contexto, qual a importância das eleições de 2022?

Penso que o futuro do Brasil e do mundo está ligado à inteligência. Na época da ditadura, chamavam-se as empresas para se instalarem no Brasil porque a mão de obra era barata, não fazia greve, pois era reprimida, e tinha muito espaço para poluir e árvores para cortar. Hoje, é exatamente o contrário disso. Precisamos de uma mão de obra mais qualificada. Temos hoje uma mão de obra vulnerável aos humores do mercado e que agrega pouco valor à economia. No próximo governo, espero que a ciência seja protagonista, assim como a saúde, a educação e o meio ambiente. O país ganha muito com isso.

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